Discurso proferido por Fidel Castro Ruz, Presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros da República de Cuba, ao receber a Ordem Congresso de Angostura, na Praça Bolívar, Cidade Bolívar, Venezuela.

Honorável Senhor Presidente;

Autoridades e cidadãos do Estado de Bolívar,

Caro povo venezuelano:

Tento imaginar aquele homem que em 15 de fevereiro de 1819, a poucos metros deste lugar, há 182 anos, esforçava-se por desentranhar os mistérios da história para levar a cabo a tarefa mais difícil que jamais encarou o homem na sua breve e convulsionada história: edificar bases estáveis, eficientes e duradouras para seu próprio governo.

Imaigino ele, acudindo ao arsenal de seus conhecimentos históricos, falar de Atenas e Esparta, de Solón e de Licurgo; meditar sobre as instituições da antiga Roma; admirar sua grandeza e seus méritos, sem demorar em acrescentar quase de imediato: "Um governo cuja única inclinação era a conquista, não parecia destinado a cimentar a felicidade de sua nação"; analisar as caraterísticas políticas das grandes potências coloniais como a Inglaterra e a França; recomendar que de cada experiência histórica seja tirado o melhor; admirar as virtudes do povo das 13 colónias libertadas recentemente do colonialismo britânico, para acrescentar depois com premonição genial que "... seja o que for deste governo com respeito à nação norte-americana, devo dizer que nem remotamente tive em mente assimilar a situação e a natureza dos Estados tão diferentes como o inglês americano e o americano espanhol"; que "...seria muito difícil aplicar a Espanha o Código de liberdade política, civil e religiosa da Inglaterra"; que "...ainda é mais difícil adaptar na Venezuela as leis dos Estados Unidos da América"; que "seria uma grande casualidade que as [ leis] de uma nação possam convenir a outra"; que aquelas "devem corresponder as caraterísticas físicas do país, ao clima, à qualidade do terreno, a sua situação, a sua extensão, ao gênero de vida dos povos, [...] à religião dos habitantes, a suas inclinações, a suas riquezas, a seu número, a seu comércio, a seus costumes, a seus modais. Eis aquí –exclama- o código que deviamos consultar, e não o de Washington!"

Se bem o Congresso de Angostura tinha por objetivo concreto criar e proclamar uma nova Constituição para a Terceira República da Venezuela, Bolívar naqueles momentos não podia substrair-se da idéia de que surgia uma etapa nova e decisiva na história do mundo, onde nosso hemisfério estava chamado a jogar um grande papel. Vertiu com crudeza muitos de seus mais íntimos pensamentos políticos e suas inquietações de eminente e previsor estatísta. Lá falou como o que sempre foi: uma patriota latino-americano.. Compreendeu melhor de que ninguém outro a possibilidade e a necessidade dessa união. Já o tinha dito antes na Proclama de Pamplona, a 12 de Novembro de 1814: "Para nós a pátria é América."

Meses mais tarde, em 6 de Setembro de 1815, em sua famosa carta de Jamaica: "Eu desejo mais do que ninguém ver formada em América a maior nação do mundo, menos por sua extensão e riquezas que por sua liberdade e glória. [ ...] Visto que tem uma origem, uma língua, uns constumes e uma religião..."

A grandeza do Libertador pode ser medida pelo valor, a tenacidade e a audácia com que tentou essa união quando uma mensagem de Caracas para Lima podia demorar três meses em chegar; ele compreendia as enormes dificuldades.

Em seu discurso em Angostura expressou com toda franqueza:

"Ao desprender-se América da Monarquia Espanhola, tem-se encontrado semelhante o Império Romano, quando aquela enorme massa caiu espalhada em meio do antigo mundo. Cada fragmento formou então uma nação independente segundo sua situação ou seus interesses; mas com a diferença de que aqueles membros voltavam a restabelecer suas primeiras associações. Nós nem sequer conservamos os vestígios do que foi noutro tempo, não somos europeus, nem indianos, mas uma espécie média entre os aborígens e os espanhóis. Americanos por nascimento e europeus por direito, encontramo-nos no conflito de disputar aos naturais os títulos de posse e de nos manter no país que nos viu nascer, contra a oposição dos invasores, deste jeito, nosso caso é o mais extraordinário e complicado."

Noutra altura de seu discurso, expressou com realismo crú:

Submetido o povo americano ao triplo jugo da ignorância, da tirania e do vício, não conseguimos adquirir nem saber, nem poder, nem virtude. Discípulos de tão perniciosos mestres, as lições que recebemos e os exemplos que estudamos são os mais destrutores. Fomos dominados mais pelo engano que pela força, e se nos degradou mais pelo vício que pela superstição. A escravidão é a filha das trevas; um povo ignorante é um instrumento cego de sua prórpia destruição; a ambição, a intriga, abusam da credulidade e da inexperiência do homens alheios de todo conhecimento político, econômico ou civil¸adoptam como realidades as que são puras ilusões.

[ ...]

"Oservareis muitos sistemas de manipular homens, mas todos para oprimí-los."

Mas nada podia desalentar a quem mais de uma vez fez possível o impossível. Ofereceu a renúncia de todos seus cargos e ofereceu sua espada para empreender a tarefa. Marchou para Apure, cruzou os Andes e destruiu em Boyacá o domínio espanhol sobre Nova Granada. Logo propôs ao Congresso de Angostura a Lei Fundamental da República da Colômbia, em Dezembro desse mesmo ano, que incluía ao Equador, que ainda não tinha sido libertado. Tinha o raro privilégio de se adiantar às páginas da história.

Tinham transcorrido apenas 10 meses desde que proferiu sua mensagem ao Congresso, a 15 de Fevereiro de 1819.

Ninguém deve esquecer de que já transcorreram quase dois séculos desde que Bolìvar falou em Angostura. Acontecimentos não previsíveis em nosso hemisfério tiveram lugar, que certamente não teriam acontecido se os sonhos bolivarianos de unidade entre as antigas colônias ibero-americanas se tivessem realizado.

Em 1929, um ano antes da sua morte, Bolívar tinha advertido com premonição: "Os Estados Unidos da América [...] parecem destinados pela Providência para encher à América de misérias em nome da liberdade.

A Federação formada pelas 13 antigas colônias, já começava um curso expansionista que resultou fatídico para o resto dos povos de nosso hemisfério. Embora despojou de suas terras e deu morte a milhares de índios americanos, avançou para o oeste esmagando direitos e arrebatando imensos territórios que pertenciam à América de língua espanhola, e a escravidão continuou como instituição legal, quase cem anos depois da daclaração de 1776 que a todos os homens considerava livres e iguais. Os Estados Unidos da América não se tinha tornado ainda império e estava longe de constituir a superpotência mundial e hegemónica e dominante que é hoje. Ao longo de sua gestação, durante mais de 180 anos após o Congresso de Angostura, interveio em inúmeras ocasiões, direta ou indiretamente, no destino de nossas fracas e divididas nações neste hemisfério, e noutras partes do mundo.

Nenhuma potência nunca tinha sido dona absoluta dos organismos financeiros internacionais, nem desfrutava do privilégio de emitir a moeda da reserva internacional sem algum sustento metálico, nem possuia essas gigantescas empresas multinacionais que sugam, como polvos, os recursos naturais e a mão-de-obra barata de nossos povos, nem ostentava o monopólio da tecnologia, as finanças e as armas mais destruidoras e sofisticadas.

Ninguém imaginava o dólar a ponto de se tornar na moeda nacional de numerosos países de nossa área; não existia uma dívida externa colossal que ultrapassa consideràvelmente o valor das exportações de quase todos países latino-americanos, nem uma proposta hemisférica da ALCA que concluiria na anexão dos países da América Latina e do Caribe aos Estados Unidos. A natureza e os recursos naturais essenciais para a vida de nossa espécie, não estavam ameaçados. Longe, bem longe dos anos do Congresso de Angostura, ficavam os tempos da globalização neoliberal. A população mundial de várias centenas de milhões de habitantes, não contrava com os 6 200 milhões de seres humanos que hoje habitam na Terra, cuja imensa maioria vivem no Terceiro Mundo, onde hoje crescem os desertos, desaparecem os bosqués, o solos são degradados, muda o clima e são cada vez mais espantosas a pobreza e as doenças que hoje açoitam o planeta.

Na nossa época, a humanidade encara problemas que vão mais além dos temas decisivos colocados por Bolívar para a vida dos povos do nosso hemisfério, os quais infelizmente, não foram resolvidos a tempo como ele desejava. Hoje, todos somos obrigados a nos debruçar na busca de soluções para os dramáticos problemas do mundo atual, que põem em perigo até a própria sobrevivência humana.

Apesar das enormes mudanças que ocorreram nesse longo e intenso período histórico, existem verdades e princípios colocados por Bolívar em Angostura, que resultam de uma vigência permanente.

Não podemos esquecer suas palavras profundas quando disse:

"Todos os homens nascem com direitos iguais aos bens da sociedade".

[...]

"A educação popular deve ser o cuidado primogênito do amor paternal do Congresso. Moral e luzes são os pólos de uma república. Moral e luzes são nossas primeiras necessidades.

[...]

"Dê-mos a nossa República uma quarta potestade [...] Constituamos este areópago para que vigie sobre a educação das crianças, sobre a instrução nacional; para que purifique o que tenha ficado corrompido na República; que acuse a ingratidão, o egoísmo, a frialdade do amor pela Pátria, o ócio, a negligência dos cidadãos; que julgue dos princípios de corrupção, dos exemplos nocivos, devendo corrigir os costumes com condenas morais.

[...]

"A cruel e desumana escravatura envolvia com seu manto preto a terra da Venezuela, e nosso céu estava recarregado de nuvens tempestuosas que ameaçavam um dilúvio de fogo.

[...]

"Vós saberdes que não se pode ser livre e escravo ao mesmo tempo, a não ser violando de vez as leis naturais, as leis políticas e as leis civis.

[...]

"Eu imploro a confirmação da liberdade absoluta dos escravos, como imploraria minha vida e a vida da República.

[...]

"Unidade, unidade, unidade, deve ser nossa palabra de ordem."

Não há nada tão comovedor e impresionante como as palavras finais daquele discurso, que fazem um retrato de corpo inteiro dos ideais e dos sentimentos de Bolívar.

"Voando por entre as próximas idades, minha imaginação enxerga os séculos futuros, e observando desde ali, com admiração e pasmo, a prosperidade, o esplendor, a vida que tem recebido esta ampla região, sinto-me arrebatado e me parece que já a vejo no coração do universo, se estendendo sobre suas dilatadas costas, entre esses oceanos que a natureza tinha separado, e que nossa pátria reúne com prolongados e espaçosos canais." [...]

"Já a enxergo comunicando seus preciosos segredos aos sábios que ignoram quão superior resulta a soma das luzes à soma das riquezas que a natureza lhe prodigou. Já a enxergo sentada sobre o trono da liberdade, empunhando o ceptro da justiça, coroada pela glória, mostrar ao mundo antigo a majestade do mundo moderno."

Um sonhador?

Um profeta?

Partilhamos com ele seus sonhos e profesias.

Os cubanos também tivemos um sonhador e um profeta, nascido 24 anos depois de Angostura, e quando, a finais desse século, já o império revolvido e brutal era uma tangível e terrível realidade. O maior admirador do Pai da Pátria venezuelana, escreveu a respeito dele, palavras que jamais poderão ser apagadas:

"Em calma não se pode falar daquele que jamais viveu nela: de Bolívar se pode falar tendo uma montanha por tribuna, ou entre coriscos e raios, ou com um feixe de povos livres no punho, e a tirania descabeçada aos pés!

[...]

"...assim está Bolívar no céu da América, vigiante e cenhoso, ainda sentado no rochedo da criação, com o inca ao lado e o feixe de bandeiras nos pés; assim está ele, calçadas ainda as botas de campanha, porque o que ele não deixou feito, sem fazer está ainda hoje: porque Bolívar ainda tem muita coisa a fazer na América!

[...]

"Quem tenha pátria, que a honre: e aquele que a não tenha, que a conquiste: essas são as únicas homenagens dignas de Bolívar."

Eu não mereço a imensa honra da Ordem que vocês me outorgaram na tarde de hoje. Só em nome de um povo que com sua luta heróica frente ao poderoso império está demonstrando que os sonhos de Bolívar e Martí são possíveis, eu a recebo.

Não há nada comparável ao privilégio de ter-me permitido dirigir-lhes a palabra neste lugar sagrado da história da América.

Desejo expressar a vocês, e a todo o povo venezuelano, em nome de Cuba, a nossa eterna gratidão.