Reflexões
do Comandante-em-Chefe
O
que aprendemos do VI Encontro Hemisférico de Havana
Maria Luisa Mendonça trouxe
ao Encontro de Havana o impactante documentário sobre o corte manual da cana no
Brasil.
Numa síntese que elaborei,
como na reflexão anterior, com parágrafos e frases do original, a essência do
que Maria Luisa expressou foi o seguinte:
Sabemos que a maioria das
guerras, nas últimas décadas, tem como fator central o controle das fontes de
energia. O consumo de energia é garantido aos setores privilegiados, tanto nos
países centrais quanto nos países periféricos, enquanto a maioria da população
mundial não tem acesso aos serviços básicos. O consumo per capita de energia
nos Estados Unidos é de 13 000 quilowatts, ao passo que a média mundial é de 2
429 e na América Latina é de 1 601.
O monopólio privado de fontes
de energia é garantido por cláusulas em Acordos de Livre Comércio bilaterais ou
multilaterais.
O papel dos países
periféricos é produzir energia barata para os países ricos centrais, o que
representa uma nova fase da colonização.
É preciso desmitificar a
propaganda sobre os supostos benefícios dos agrocombustíveis. No caso do
etanol, a cultura e processamento da cana-de-açúcar contamina os solos e as
fontes de água potável, porque utiliza uma grande quantidade de produtos
químicos.
O processo de destilação do
etanol produz um resíduo denominado vinhoto. Por cada litro de etanol produzido
são gerados de
A queima da cana-de-açúcar,
que serve para facilitar a colheita, destrói grande parte dos microorganismos
do solo, contamina o ar e causa muitas doenças respiratórias.
O Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais do Brasil decreta quase todos os anos
Como sabemos, a expansão da
produção de agroenergia é de grande interesse para as empresas que produzem
organismos geneticamente modificados ou transgênicos, como Monsanto, Syngenta,
Dupont, Bass e Bayer.
No caso do Brasil, a empresa
Votorantim desenvolveu tecnologias para a produção duma cana transgênica, que
não é comestível, e sabemos que muitas empresas estão desenvolvendo este mesmo
tipo de tecnologia e, como não há meios para evitar a contaminação dos
transgênicos nos campos de culturas nativas, esta prática coloca em risco a
produção de alimentos.
No que se refere à
desnacionalização do território brasileiro, grandes empresas adquiriram usinas
açucareiras no Brasil: Bunge, Novo Group, ADM, Dreyfus, além dos
megaempresários George Soros e Bill Gates.
Como resultado disso, sabemos
que a expansão da produção de etanol provocou a expulsão de camponeses de suas
terras e criou uma situação de dependência do que denominamos a economia da
cana, porque não é que a indústria da cana gere empregos, pelo contrário, gera desemprego, porque essa
indústria controla o território. Isso significa que não há espaços para outros
setores produtivos.
Ao mesmo tempo, temos a
propaganda da eficiência dessa indústria. Sabemos que se baseia na exploração
de uma mão-de-obra barata e escrava. Os trabalhadores são remunerados segundo a
quantidade de cana cortada e não pelas horas trabalhadas.
No estado de São Paulo, que é
onde está a indústria mais moderna -moderna entre aspas, evidentemente- e é o
maior produtor do país, a meta de cada trabalhador é cortar entre 10 e 15
toneladas de cana por dia.
Um professor da universidade
de Campinas, Pedro Ramos, fez estes cálculos: nos anos 80 os trabalhadores
cortavam aproximadamente 4 toneladas por dia e recebiam o equivalente a mais ou
menos 5 dólares. Atualmente, para conseguir 3 dólares por dia, é preciso cortar
15 toneladas de cana.
O próprio Ministério do
Trabalho do Brasil fez um estudo no qual diz que antigamente
Uma pesquisadora do
Ministério do Trabalho
Segundo Maria Cristina
Gonzaga, que fez a pesquisa, esta investigação do Ministério do Trabalho mostra
que nos últimos cinco anos 1 383 trabalhadores canavieiros morreram apenas no
Estado de São Paulo.
O trabalho escravo também é
comum neste setor. Geralmente os trabalhadores são migrantes do nordeste ou de
Minas Gerais, que são seduzidos por intermediários. Normalmente o contrato não
é feito diretamente com a empresa, senão através de intermediários, que no
Brasil os chamamos de “gatos”, que escolhem mão-de-obra para as usinas.
Em 2006, só
Apenas em março de 2007, os
procuradores do Ministério do Trabalho resgataram 288 trabalhadores em situação
de escravidão
Nesse próprio mês, no Estado
de Mato Grosso, foram resgatados 409 trabalhadores numa usina que produz
etanol; entre eles havia um grupo de 150 indígenas. Nessa área do centro do
país,
Todos os anos centenas de
trabalhadores sofrem condições análogas nos canaviais. Como é que são estas
condições? Trabalham sem um registro formal, sem equipamentos de proteção, sem
água ou alimentação adequada, sem acesso aos banheiros e com habitações muito
precárias; além disso, eles têm que pagar pela habitação, pela comida, que é
muito cara, e precisam pagar por equipamentos como botas e facões e, claro, no
caso de acidentes de trabalho, que são muitíssimos, não recebem o tratamento
adequado.
Para nós, a questão essencial
é eliminar o latifúndio, porque por trás desta imagem moderna há um problema
fundamental, que é o latifúndio no Brasil e, evidentemente, noutros países da
América Latina. Também é preciso uma política séria de produção de alimentos.
Com isto queria apresentar um
documentário que fizemos no Estado de Pernambuco com os trabalhadores
canavieiros, que é uma das regiões onde mais se produz a cana-de-açúcar, e
assim vocês verão realmente como são as condições.
Este documentário foi feito
junto da Comissão Pastoral da Terra no Brasil e dos sindicatos dos
trabalhadores florestais do Estado de Pernambuco.
Assim conclui a sua
intervenção a destacada e aplaudida dirigente brasileira.
A seguir, exponho as opiniões
dos cortadores de cana que aparecem no material fílmico entregado por Maria
Luisa. Quando no documentário não aparecem identificadas as pessoas, indica-se
a sua condição de homem, mulher ou jovem. Não as incluo todas pela sua
extensão.
Severino Francisco da Silva.-
Quando eu tinha 8 anos, meu pai mudou-se para o engenho do Junco. E quando
cheguei, eu quase fazia 9, meu pai começou a trabalhar e eu atava cana com ele.
Trabalhei uns 14 ou 15 anos no engenho do Junco.
Uma mulher.- Há 36 anos que
moro neste engenho. Me casei aqui e teve 11 filhos.
Um homem.- Há muitos anos que
trabalho no corte da cana; não sei nem contar.
Um homem.- Comecei a
trabalhar com 7 anos e minha vida é cortar cana e desmatar.
Um jovem.- Nasci aqui, tenho
23 anos, desde os 9 anos corto cana.
Uma mulher.- Trabalhei 13
anos aqui na Planta Salgado. Eu semeava cana, semeava adubo, limpava cana,
capim.
Severina Conceição.— Eu sei
fazer todos esses trabalhos do campo: semear adubo, semear cana. Eu fazia tudo
com “o bombo” deste tamanho (refere-se à gravidez) com o cabaz a um lado, e
continuava trabalhando.
Um homem.— Trabalho, todos os
trabalhos são bem difíceis, porém a colheita da cana é o pior que há no Brasil.
Edleuza.— Chego a casa e lavo
a louça, arrumo a casa, cuido do serviço doméstico, faço as coisas. Cortava
cana, e às vezes chegava a minha casa e nem podia lavar a louça, tinha as mãos feridas,
cheias de calos.
Adriano Silva.— Acontece que
o administrador exige muito no trabalho. Há dias que a gente corta cana e recebe
o ordenado, mas há dias que não recebe nada. Às vezes é suficiente, noutras não.
Misael. — A situação aqui é
perversa, o feitor quer diminuir o peso da cana. Disse que o que nós cortemos
aqui é o que temos, e acabou. Trabalhamos como escravos, entendeu? Assim não se
pode!
Marcos. — A colheita da cana
é um trabalho escravo, é um trabalho difícil. Saímos às 3hrs da manhã, chegamos
às 8hrs da noite. Isso apenas é bom para o patrão, porque cada dia que passa
ele ganha mais e o trabalhador perde, diminuindo a produção e o patrão fica com
tudo.
Um homem. — Às vezes
deitamo-nos sem ter tomado banho, não há água, tomamos banho num riacho que
passa aí embaixo.
Um jovem. — Aqui não há lenha
para cozinhar, se a gente quer comer, tem que sair e buscar lenha.
Um homem. — O almoço, é o que
a gente traz da casa, traz uma ração, é o que arranjar, sob esse sol, faz o que
pode na vida.
Um jovem. — Todo aquele que
trabalha muito precisa de uma boa alimentação. Enquanto o dono da usina tem privilégios,
do bom e do melhor, e nós aqui sofrendo.
Uma mulher. — Passei muita
fome. Muitas vezes deitei com fome, às vezes não tinha nada para comer, nem
para dar a minha filha; nalgumas ocasiões ia procurar sal, que era o que encontrávamos
com maior facilidade.
Egidio Pereira. — A gente tem
dois ou três filhos, e se não se cuida, morre de fome; não dá para viver.
Ivete Cavalcante. — Aqui não
existe o salário, há que limpar uma tonelada de cana por oito reais; a gente
ganha conforme o que consegue cortar: se a gente corta uma tonelada, ganha oito
reais, não há salário fixo.
Uma mulher. — Salário? Eu não
sei nada disso.
Reginaldo Souza. — Às vezes
eles pagam
Uma mulher. — O vale, a gente
trabalha, ele anota tudo num papelzinho, entrega-o à pessoa para que compre no
mercado. A pessoa não vê o dinheiro que ganha.
José Luiz. — O feitor faz
tudo o que quiser com as pessoas. O que acontece é que pedi para “calcular a média”
da cana, ele não quis. Isto é: neste caso, ele obriga as pessoas a trabalharem pela
força. Desta maneira a pessoa trabalha grátis para a empresa.
Clovis da Silva. — Isso nos
mata! A gente passa meio-dia cortando cana, acha que vai ganhar algum dinheiro,
e quando ele vai medir, constatamos que o trabalho não valeu nada.
Natanael. — O caminhão que
transporta o gado aqui é utilizado para levar os trabalhadores, é pior que com
o cavalo do dono; porque quando o dono coloca seu cavalo no caminhão, ele lhe
põe água, serradura no chão para que o cavalo não se dane os cascos, pasto, uma
pessoa para acompanhá-lo; e os trabalhadores, que se acomodem como puderem: ele
entrou, fechou a porta e acabou. Eles tratam os trabalhadores como se fossem
animais. O “Pro-Álcool” não ajuda os trabalhadores, só aos fornecedores de
cana, ajuda os patrões e os enriquece cada vez mais; porque se gerasse emprego
para os trabalhadores, para nós seria fundamental, mas não gera empregos.
José Loureno. — Eles têm todo
esse poder porque na Câmara, estadual ou federal, têm um político que
representa essas usinas açucareiras. Há donos que são deputados, ministros,
parentes dos senhores de engenho, que facilitam essa situação para os donos e
para os senhores de engenho.
Um homem. — Parece que nossa
luta não acaba nunca. Não temos férias, nem o décimo terceiro, tudo se perde.
Além disso, a quarta parte do salário que é obrigado receber, não a recebemos,
é com isso que no fim do ano compramos roupa para nós e para nossos filhos.
Eles não nos entregam nada disso, e vemos que a situação fica cada vez mais
difícil.
Uma mulher. — Eu sou trabalhadora
registrada, e jamais tive direito a nada, nem a um atestado médico. Quando
ficamos grávidas, temos direito a um atestado médico, mas eu não tive esse
direito, garantia de família; também não tive o décimo terceiro, sempre recebia
alguma coisinha, depois não recebi mais nada.
Um homem. — Há 12 anos que
ele não paga nem o décimo terceiro nem as férias.
Um homem. — A gente não pode
adoecer, trabalha dia e noite no caminhão, no corte de cana, de madrugada. Eu
perdi minha saúde, eu era forte.
Reinaldo. — Um dia eu estava com
umas sapatilhas nos pés; quando dei um golpe de facão para cortar a cana que
atingiu um dos meus dedos, me cortou, terminei o trabalho e regressei para a
casa.
Um jovem. — Não há botas,
trabalhamos assim, muitos trabalham descalços, não há condições. Disseram que a
usina ia doar botas. Há uma semana que ele feriu o pé (assinala) porque não há
botas.
Um jovem. — Eu estava doente,
estive assim durante três dias, não recebi salário, não me pagaram nada. Fui ao
médico, pedi o atestado e não mo deram.
Um jovem. — Houve um rapaz que
chegou de “Macugi”. Estava trabalhando, no meio do trabalho começou a se sentir
mal, teve que vomitar. O esforço é grande, o sol é muito quente e a gente não é
de ferro, o corpo do ser humano não resiste.
Valdemar. — O veneno que
utilizamos provoca muitas doenças (refere-se aos herbicidas). Ocasiona vários
tipos de doenças: câncer de pele, nos ossos, vai penetrando no sangue e dana a
saúde. Sentem-se náuseas, a gente até cai.
Um homem. — No período entre
as colheitas praticamente não há trabalho.
Um homem. — O trabalho que o
patrão manda a fazer tem que fazê-lo; porque vocês sabem, se não o fazemos...
Nós não mandamos; eles são quem mandam. Se te dão uma tarefa, tem que fazê-la.
Um homem. — Aqui estou à espera
de que nalgum dia possa ter um pedacinho de terra para terminar minha vida no
campo, para poder encher minha barriga, a dos meus filhos e a dos meus netos,
que vivem comigo.
Será que há algo a mais?
Fim do documentário.
Ninguém fica mais agradecido
do que eu por este testemunho e pela apresentação de Maria Luisa, cuja síntese acabo
de elaborar. Fazem com que venham à minha memória os primeiros anos de minha
vida, uma idade na qual os seres humanos costumam ser muito ativos.
Nasci num latifúndio
canavieiro, de propriedade privada, rodeado pelo norte, pelo leste e pelo oeste
por grandes extensões de terra propriedade de três multinacionais
norte-americanas que, em conjunto, possuíam mais de 250 mil hectares de terra.
O corte era manual, em cana verde, nessa altura não se usavam herbicidas, nem
sequer fertilizantes. Uma plantação podia durar mais de 15 anos. A mão-de-obra
era tão barata que as multinacionais ganhavam muito dinheiro.
O dono da quinta canavieira
em que eu nasci era um imigrante de origem galega e família camponesa pobre,
praticamente analfabeto, a quem trouxeram primeiramente como soldado no lugar
de um rico que pagou para iludir o serviço militar e quando acabou a guerra o
repatriaram para a Galiza. Voltou a Cuba por si próprio, mesmo como o fizeram inúmeros
galegos que viajaram aos países da América Latina. Trabalhou como peão de uma
importante multinacional, a United Fruit Company. Tinha qualidades como
organizador, recrutou um elevado número de jornaleiros como ele, virou contratista
e comprou finalmente terras na zona que limitava com o sul da grande empresa
norte-americana com a mais-valia acumulada. Na região oriental a população
cubana, de tradição independentista, tinha crescido notavelmente e carecia de
terra; contudo o peso principal da agricultura do oriente do país, no começo do
século passado, recaia sobre os escravos libertados poucos anos antes ou sobre
os descendentes dos antigos escravos e sobre os imigrantes procedentes do
Haiti. Os haitianos não tinham família. Viviam sozinhos em suas deploráveis
vivendas de colmo e tábuas de palmeira, agrupados em casarios, com a presença
de apenas duas ou três mulheres entre eles. Durante os breves meses de safra se
realizavam lutas de galos. Ali gastavam os haitianos suas miseráveis rendas, e
o resto utilizavam-no para comprar alimentos, que passavam por muitos
intermediários e eram caros.
O proprietário de origem
galega vivia ali, na quinta canavieira. Apenas saia para visitar as plantações
e falava com todo aquele que o procurava ou precisava de alguma coisa. Muitas
vezes acedia aos pedidos, por razões mais humanitárias do que econômicas. Podia
tomar decisões.
Os administradores das plantações
da United Fruit Company eram norte-americanos cuidadosamente selecionados e bem
remunerados. Viviam com suas famílias em mansões imensas, em lugares
escolhidos. Eram como deuses distantes, que os trabalhadores famintos
mencionavam com respeito. Jamais eram vistos nos cortes, onde trabalhavam seus
subordinados. Os donos das ações das grandes multinacionais viviam nos Estados
Unidos ou em qualquer outra parte do mundo. Os gastos das plantações estavam muito
controlados e ninguém podia aumentar um cêntimo.
Conheço muito bem a família
do segundo matrimônio do imigrante de origem galega com uma jovem camponesa
cubana, muito pobre que, mesmo como ele, não pôde ir à escola. Era muito
abnegada e dedicada de mais à família e às atividades econômicas da plantação.
Aqueles que no estrangeiro
leiam estas reflexões pela Internet ficarão surpreendidos ao saberem que esse
proprietário era meu pai. Sou o terceiro filho dos sete desse matrimônio, que nascemos
no quarto de uma casa de campo, muito longe de qualquer hospital, assistidos
pela mesma parteira, uma camponesa dedicada em corpo e alma a sua tarefa, que
só contava com seus conhecimentos práticos. A Revolução entregou aquelas terras
todas ao povo.
Só me resta acrescentar que
apoiamos totalmente o decreto de nacionalização da patente a uma multinacional
farmacêutica para a produção e comercialização no Brasil de um medicamento
contra a AIDS, o Efavirenz, de preço abusivamente alto, — igual que muitos
outros —, assim como também a
recente solução mutuamente satisfatória do diferendo com a Bolívia a respeito das
duas refinarias de petróleo.
Reitero que sentimos profundo
respeito pelo irmão povo do Brasil.
Fidel Castro Ruz
14 de maio de 2007
5:12 p.m.