Havana, 12 de Dezembro de 2007
Caro Randy:
Emocionei-me muito com o extraordinário
documentário da realizadora argentina Carolina Silvestre, no qual desmente uma
a uma as mentiras da democracia e os directos humanos do capitalismo desenvolvido
e globalizado.
Desde há dias, a partir do referendo venezuelano a
2 de Dezembro, tentava recordar, entre as centenas de pronunciamentos emanados
da minha tarefa revolucionaria, um deles no qual definia concretamente a nossa
posição sobre os compromisso internacionais de Cuba.
Pedi cópia de diversos materiais nos que tratava o
tema.
Quis ao azar que um dos materiais mais precisos foi
o apresentado na Mesa Redonda. É bem
recente, tem só um pouco, menos de sete anos.
Estamos envolvidos em um processo eleitoral. Considero as ideias o ponto de partida de
minha vida política. Este material, que
te estou enviando textualmente, o intitularia hoje com sua última Linha:
“A história dirá quem tem a razão”
Peço-te o transmitas, caso for possível, amanhã quinta-feira.
Foi motivado por umas palavras proferidas pelo
Primeiro Ministro do Canadá, da altura, Jean Chrétien, na III Cúpula das
Américas.
Minha declaração naquela altura poderia parecer sem
transcendência.
Fidel Castro Ruz.
Dezembro 13 de 2007
Para a Mesa Redonda, uma saudação fraternal, e a
minha gratidão antecipada por sua rápida resposta.
Fidel Castro
A história dirá quem tem a razão
Resposta do Comandante-em-chefe Fidel Castro Ruz ao
moderador da mesa redonda informativa, em 25 de Abril de 2001, sobre as
declarações realizadas pelo primeiro-ministro de Canadá, Jean Chrétien, durante
a III Cimeira das Américas.
Comandante: Muito bem, agora paciência. Talvez este material
seja de interesse, se você me dá a palavra.
Acho que valia a pena dedicar uns minutos a isso.
Vais a falar da sede?
Randy Alonso: Da sede da III Cimeira e das declarações que fez o
seu Primeiro-Ministro... Houve várias declarações do Primeiro-Ministro, também
houve declarações do Chanceler.
Comandante: Sim, eu escolhi uma, porque ao que mais conheço é
ao Primeiro-Ministro e é com ele que tenho mais amizade.
Bom, para que o povo compreenda de que se trata:
"Quebec (Canadá), 19 de Abril (EFE).- O Primeiro-Ministro canadiano,
Jean Chrétien, justificou hoje a exclusão de Cuba da III Cimeira das Américas
pela falta de gestos do regime cubano em temas de direitos humanos apesar de
‘passar horas a tentar de convencer’ a Fidel Castro para que mudasse de
política.
"Quando chegou ao centro de convenções de Quebec onde será celebrada a
Cimeira este fim-de-semana, Chrétien foi perguntado se tinha mudado a sua
posição sobre a inclusão de Cuba no processo das Cimeiras das Américas, visto
que nas anteriores reuniões em Miami e Santiago tinha solicitado a presencia do
regime de Castro.
"‘Não mudei de opinião’, respondeu Chrétien.
"O Primeiro-Ministro canadiano se mostrou inabalável quando se lhe
perguntou se Cuba não estava presente em Quebec pela negativa de Washington.
"Igualmente, quando foi pressionado para que indicasse que outro país
do continente se tinha oposto à participação de Castro na III Cimeira das
Américas, Chrétien respondeu ao jornalista com ‘pergunte-lhe a eles’.
"O Primeiro-Ministro canadiano acrescentou que tinha passado ‘horas e
horas tentando de persuadir a Castro’ para que assinasse algumas convenções
sobre direitos humanos, mas que não obteve nenhum gesto do regime de Havana’.
"‘Passei horas com ele (Fidel Castro) tentando que assinasse algumas
resoluções das Nações Unidas’, sublinhou Chrétien."
Tenho meditado muito sobre esse pronunciamento do senhor Chrétien. Não
tinha nenhuma necessidade de emitir uma valoração pública precipitada e
improvisada daquele encontro.
Trabalhei na procura de dados e reconstruindo com a maior objectividade
possível o que ali conversamos e a atmosfera em que se levaram a cabo os nossos
intercâmbios.
Cá trago uma reflexão escrita, devido à necessidade de precisão pela
delicadeza dos temas.
Logo começamos a reunião, quase de forma quase abrupta, colocou sobre a
mesa uma pequena lista de nomes, era evidente que a tinha recebido
recentemente. Quase adivinhei de o quê se tratava. Era o habitual, cada vez que
nos visitava uma pessoalidade política de algum país aliado dos Estados Unidos
ou algum político norte-americano: o Departamento de Estado lhe entregava uma
lista de pessoas processadas ou sancionadas por actividades
contra-revolucionárias. As listas sempre começavam por aquelas que eram de
maior importância e interesse para os serviços de inteligência ou do governo
dos Estados Unidos. Pedia o indulto ou a liberdade para elas. Era uma táctica
invariável do governo dos Estados Unidos para pressionar em favor dos seus
amigos, aproveitando qualquer visita amistosa a Cuba. Como no nosso país geralmente
se exerce a maior tolerância possível, só em casos excepcionais as autoridades
procedem ao detenção e processamento dos implicados quando as suas acções
provocadoras são graves e totalmente inadmissíveis.
O Primeiro-Ministro canadiano me lembra que, por motivo da visita do Papa,
um número de sancionados por causas contra-revolucionárias tinham sido
indultados e ele se tinha comprometido a solicitar o mesmo para os incluídos na
lista.
Na verdade, o Papa nunca abordou esse tema na conversação comigo, e o tinha
feito através do seu Secretário de Estado noutra reunião com o Ministro de
Relações Exteriores.
Sem esperar resposta, coloca logo que Cuba subscreva o Convénio de Nações
Unidas sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, visto que Cuba nessa
matéria tinha feito igual ou mais que qualquer outro país do mundo. Era sem
dúvida uma frase lisonjeira e uma forma mais habilidosa e oportuna de colocar
alguma coisa.
Lembro que, imediatamente, menciona o acordo de livre comércio entre
Canadá, México e os Estados Unidos, e os projectos de fazê-lo com o resto de
América Latina, expressando o seu critério de que Cuba podia fazer uma
importante contribuição.
E por último, refere-se ao tratado contra as minas anti pessoais,
lamentando-se de que Cuba não o tinha assinado e solicitando que o
subscrevesse. Eram esses os quatro pontos com os que iniciou as suas
conversações. Todos pareciam muito simples; contudo, os quatro eram sumamente
complexos.
Perguntei-lhe se era costume nos políticos canadianos começar pelo mais
difícil, e acrescentei-lhe, a modo de brincadeira, que se não saíamos bem
dessas provas, se estregaria a visita.
Acho que a reunião durou ao redor de duas horas, num tono cordial e
respeitoso, sobre tudo franco. Devo confessar que usei a maior parte do tempo
porque era necessário argumentar com determinada profundidade a razão das
nossas posições, em especial sobre três dos pontos.
É impossível repetir aqui cada um desses argumentos. Apenas uma breve síntese,
com as respostas essenciais.
Disse-lhe que eu não devia decidir pessoalmente e de imediato, ou
comprometer-me sobre algumas das questões, e também não criar falsas
expectativas sobre as decisões que adoptaríamos. Que a muito publicitada
questão de supostos presos de consciência era uma velha história depois de
quase 40 anos de todo tipo de malfeitorias e crimes por parte do governo dos
Estados Unidos contra Cuba. Os enumerei com amplitude e pormenores,
contrastando-os com a imaculada conduta e a ética da nossa Revolução apesar do
dilúvio de infâmias e calunias vertidas contra Cuba. A hipocrisia e dupla moral
da política seguida contra ela. As circunstâncias que nos tinham obrigado a ter
pessoas
Numa altura, disse-me que o seu desejo era ultrapassar essa situação para
que voltássemos à grande família. Disse-lhe que nós éramos latino-americanos, e
perguntei-lhe se se tratava de que voltássemos à grande família ou que a grande
família voltasse a nós. Terminei o ponto respondendo-lhe que ele tinha trazido
uma lista de pessoas que eram mercenários ao serviço dos Estados Unidos e pagos
pelos Estados Unidos, e que em cumplicidade com esse país tentavam destruir à
Revolução. Que como amigo lhe devia dizer que essa lista era humilhante para
Cuba. Esmerou-se em explicar que essa não era a sua intenção, e que talvez
tinha apresentado a lista muito cedo.
Nem tudo foi dramático. Houve brincadeiras e inclusive anedotas
intercaladas. Esta parte, referida com certa extensão, pode dar uma ideia da
intensidade da primeira hora de conversação.
Com respeito a sua ênfase na família hemisférica, expressei-lhe que estava
muito contente, mas que eu pensava também na família universal: Europa, Ásia e
África.
No que se refere ao ponto dois, o Convénio de Nações Unidas sobre os
Direitos Económicos, Sociais e Culturais, não hesitei em lhe dizer que nós
podíamos subscrever todos os artigos salvo dois, o 8 e o 13. Que o primeiro
poderia estar muito bem para um país capitalista como Canadá, os Estados Unidos
e os de América Latina, porque em uns governavam os empresários ou os oligarcas
e noutros as grandes multinacionais. Ali dividiam, fraccionavam e, quando era
possível, corrompiam e alienavam os trabalhadores, que muito pouco podiam fazer
perante o poder político dos patrões. Tratava-se de sistemas económicos
diferentes ao nosso.
Com respeito a esse artigo do Convénio, onde se diz que cada pessoa tem o
directo de fundar sindicatos e afiliar-se aos da sua eleição, com subjecção
unicamente aos estatutos da organização correspondente, para promover e
proteger os seus interesses económicos e sociais, num país socialista como
Cuba, onde os trabalhadores manuais e intelectuais estão todos organizados nos
seus respectivos sindicatos e solidamente unidos como classe revolucionária que
partilha o poder com o resto do povo, os camponeses, as mulheres, os
estudantes, os vizinhos e a cidadania em geral, tal preceito serviria de arma e
de pretexto ao imperialismo para tentar de dividir e fragmentar os
trabalhadores, criar sindicatos artificiais, e reduzir a sua força e influência
política e social. Nos Estados Unidos e em muitos países de Europa e noutras
regiões, a estratégia do imperialismo é dividir, enfraquecer e corromper o
movimento sindical até colocá-lo em condições de indefesa total perante os
patrões. Em Cuba o propósito seria fundamentalmente subversivo e
desestabilizador, socavar o poder político, diminuir a extraordinária força e
influência dos nossos trabalhadores, e desgastar a heróica resistência do único
Estado socialista de Ocidente frente à superpotência hegemónica.
O outro preceito também não poderia ser assinado porque abriria as portas à
privatização do ensino, que no passado deu lugar a dolorosas diferenças e
irritantes privilégios e injustiças, incluída a discriminação racial que as
nossas crianças não voltarão a conhecer jamais. Um país que conseguiu erradicar
em apenas num ano o analfabetismo, alcançou níveis de nona classe como média, e
possui um extraordinário e massivo contingente de professores e o mais sadio e
sucedido sistema de educação do mundo, não precisa comprometer-se com tal
preceito.
Disse-lhe a Chrétien que América Latina levava quase 200 anos a tentar de
acabar com o analfabetismo e ainda não o tinha feito.
Chrétien propôs que assináramos o Convénio e fizéssemos a reserva com
respeito a esses dois artigos. Respondemos-lhe que depois se fala de
incumprimentos do Convénio e ninguém sabe ou se lembra das reservas com que foi
assinado. Com isso não se podia jogar!
No que diz respeito ao tratado sobre as minas não falamos muito nessa
reunião. Adiantei-lhe que não o íamos a assinar. Que inclusive tínhamos uma
base militar dos Estados Unidos no nosso próprio território. Que entre o limite
da mesma e o resto do nosso território, era o único ponto onde estavam
instaladas. Que as minas constituíam para nós uma arma defensiva à que não
cometeríamos o erro de renunciar; que não possuíamos armas nucleares, bombas ou
mísseis inteligentes, nem outros muitos sofisticados meios que possui os
Estados Unidos. Que sobre o nosso país havia uma ameaça real, e por essa razão
não pensávamos assinar o tratado.
Mais tarde abordou de novo o tema desde um ângulo que eu não teria podido
suspeitar nesse instante. Ao findar este primeiro encontro me afirmou, com
evidente satisfação e sinceridade, que tinha sido una discussão excelente. A
síntese do essencial do abordado na nossa primeira reunião pode dar a impressão
de que foi áspera. Nada mais longe da realidade. Em todo momento reinou uma atmosfera
cálida e amistosa.
Pareceu-me perceber com clareza —embora não o disse, mas sim do conjunto do
que disse o senhor Chrétien— que perante a presença de um vizinho tão poderoso
com o qual tem 8 644 quilómetros de fronteira, experimentava temor pelo
futuro do seu país. Consciente das duas fortes culturas e tradições diferentes
bem enraizadas, inquieta-lhe o risco que para a unidade do Estado significa que
qualquer ambição, um erro, ou uma simples sacudida do vizinho, destrua o país.
Para esse enorme e rico território, povoado por apenas 32 milhões de habitantes,
onde entre outros recursos —como me disse o próprio Chrétien—encontra-se a
quarta parte das reservas de agua potável do mundo, talvez ainda mais que para
a própria Cuba, os Estados Unidos constitui uma grande dor de cabeça.
No que talvez foi o momento mais interessante da conversação, e onde
Chrétien expôs a sua ideia mais inteligente, capaz de provocar até num
interlocutor bastante distante da sua ideologia um sentimento de solidariedade,
foi quando contou que ele se tinha oposto à ideia de um acordo de livre
comércio unicamente com os Estados Unidos. Tinha que buscar pelo menos um
terceiro, e apareceu o México, com o qual em muitas ocasiões partilhava
posições frente aos manejos dos Estados Unidos. Que em 2005 seriam 34, e oxalá
35 (evidente alusão a Cuba), para ter uma balanço com os Estados Unidos.
Numa altura me disse que Canadá era um país muito preocupado pela sua
independência com relação aos Estados Unidos, que era de grande importância manter
a sua independência dos Estados Unidos, e que a sua política era manter
relações estreitas e amistosas com esse país, mas muito independentes.
Afirmou-me com orgulho que já Canadá concorria com o vale de Silicone de
Califórnia, onde se produz toda a alta tecnologia.
A segunda reunião com Chrétien e a sua delegação tem lugar à noite. Houve
um jantar e um intercâmbio mais amplo. Em determinada altura, ao mencionar o
plano de atentado contra mim na Ilha de Margarita, organizado pela famosa
Fundação, disse-me que amiúde essa era a causa de grandes dificuldades, porque
quando ocorreu o incidente dos aviões foi para criar esse problema ao governo
dos Estados Unidos que estava pronto para dar um passo positivo com relação a
Cuba. Falei-lhe da Lei de Ajuste Cubano, as suas absurdas e irracionais
consequências.
Também falamos da Lei Helms-Burton. Com respeito a essa lei me disse que os
Estados Unidos se encontravam isolados. Que ele pessoalmente foi o primeiro em
fazer uma declaração quando foi aprovada. Que quando estava reunido com os
Primeiros-Ministros das Caraíbas, juntos fizeram a primeira declaração contra a
Helms-Burton.
Com respeito ao incidente dos aviões no ano de 1996, utilizado como
pretexto para aprovar a Lei Helms-Burton, disse-lhe que
Quando me perguntou pelo ALCA, disse-lhe que devíamos ter paciência, saber
o que ia a acontecer
Pela minha parte lhe disse francamente a minha opinião de que para os países da
América Latina seria conveniente o sucesso da integração Européia e que a
Europa compita com os Estados Unidos pelos mercados e inversões na América Latina. É melhor que existam duas,
três, quatro potências económicas fortes
para que a economia mundial não dependa únicamente dum poderoso país e duma
única moeda.
Tambén conversamos sobre a
tecnologia candense em matéria de
energia nuclear e a possibilidade de que no futuro o nosso país pudesse adquirir reatores canadenses
embora, pelo momento, para nós não era a melhor opção nem a mais económica para
o rápido crescimento da geração eléctrica de que precisamos com determinada
urgência.
Também lhe falei, sobre os
mexicanos que estavam morrendo na fronteira com os Estados Unidos, onde já
morreram cada ano muitos mais do que os os que morreram durante quase 30 anos de existência do muro
de Berlim.
Poucos temas importnates
estiveram ausentes do nosso intercâmbio.
No ambiente propício criado e
tendo em conta a participação do Canadá nos acontecimentos políticos do Haití ,
já em processo de normalização, e a sua presença nesse país,lhe disse que o
Haití era um vizinho próximo e um dos países mais pobres do mundo, com
terríveis indicadores de saúde, incluído
a SIDA, que ameaçavam com uma catástrofe humana e lhe perguntei.porquê
não dávamos um exemplo de cooperação e elaborávamos um programa de saúde para o
Haití. Cuba enviaria o pessoal médico e o
Canadá forneceria os medicamentos e equipamentos necessários.
Perguntou-me se o tinha
discutido com o Presidente de Haiti. Respondi-lhe que não podia oferecê-lo para
ele se não coordenava primeiro com o governo canadense, expressando-lhe a minha
convicção de que aceitariam.
Falou-me do seu interesse
especial por um país de língua francesa, pois uma parte importante da população
de Canadá fala essa língua, e portanto, tinha interesse em programas para
Haiti. Que analisaria a proposta. Comuniquei-lhe que falaria com o governo
haitiano.
Aparentemente aquela ideia lhe
sugeriu de imediato outra. Disse-me seguidamente que tinha uma proposta que
fazer sobre um programa conjunto: um programa conjunto com Angola e Moçambique
para a erradicação das minas antipessoais. Vocês podem pôr os trabalhadores,
nós o dinheiro, acrescentou. Que esses países já tinham assinado o convénio.
Foi lhe indicado por nossa parte que aqueles que podiam fazer esse trabalho
eram unicamente os militares. Respondeu que nós os cubanos tínhamos o pessoal
especializado e eles forneceriam o dinheiro para o programa, pois já tinham
aprovado o orçamento.
Que vários países tinham
comprometido fundos para a limpeza dos campos minados, entre eles o Japão, a
Suécia, a Dinamarca e outros, como nós tínhamos especialistas pensava que os
cubanos poderíamos fazer esse trabalho.
É inquestionável que não percebeu de quão ofensivo poderia ser o que estava
propondo. Uma cooperação humanitária
Experimentei por
breves segundos uma sensação de ultraje, recordando o desinteressado espírito
de sacrifício, a história limpa e nobre de um povo que encarava uma intensa
guerra económica e o período especial disposto a morrer por suas idéias. Alguém
pretenderia valer-se dessa situação para nos tentar com missões desse tipo?
Tendo em conta as
características do meu interlocutor, e o tom amável, franco, confiante, e ate
inclusive o humor com que - eu lembro – foram desenvolvidos os nossos
intercâmbios, ainda penso que o que disse e a maneira em que o disse não foi um
ato consciente do que objetivamente
podiam ser interpretadas as suas palavras.
Expliquei-lhe que em
Angola era ainda difícil a desativação das minas, porque estavam os bandos
armados pelos Estados Unidos e Africa do Sul; que todas essas minas tinham sido
entregues pelos Estados Unidos e a Africa do Sul do apartheid a Savimbi. Que
isso podia custar mutilações e perda de vidas. Como justificar perante o nosso
povo a participação cubana?
Com a maior
tranqüilidade lhe propus o que qualifiquei como solução razoável: estávamos
dispostos para treinar todo o pessoal necessário de Angola, Moçambique ou
qualquer outro país afetado por problemas deste tipo para levar a cabo essa
tarefa nos seus próprios territórios.
Este tema quase
ocupou a última parte da segunda conversa, embora continuou durante vários
minutos no mesmo tom amigável e amável.
O desagradável ponto
tinha sido referido por nossa parte de forma serena e razoável, escutado e
aparentemente compreendido e aceite pela
delegação canadense.
As bases de dois
programas importantes de cooperação com terceiros países tinham sido acordadas
em princípio, sobre as quais se continuaria trabalhando.
Observei bem o
caráter e a personalidade do Primeiro-ministro canadense. É um homem de
conversa agradável, bom humor, com o que se pode estabelecer um intercâmbio
interessante sobre vários temas. Preocupa-se por determinados temas do mundo
actual e se entusiasma com os projectos da sua preferência, conhece a muitas
personalidades políticas, sabe usar a sua experiência e desfruta quando contar
anedotas em geral interessantes e oportunas. Achei-o sinceramente patriótico. É
muito leal ao seu país e sente orgulho por ele. Um crente fanático do modo
capitalista de produção qual se fosse uma religião de monoteísta, e da ingénua
idéia de que essa é a única solução para todos os países por igual, em qualquer
continente, época, clima ou região do mundo. Nessa filosofia foi educado. Não
estou certo de que com ela possa compreender completamente as realidades do
mundo de hoje.
Conheci Trudeau, um
estadista excepcional, de grande modéstia e humildade, pensamento profundo e
homem de paz; estou certo de que compreendeu bem o mundo e também a Cuba.
Houve depois outras actividades.
Fui a recepção de Chrétien no quintal da embaixada do Canadá. Estava alegre,
conversador, de bom ânimo. Logo se reuniria com Clinton. Acompanhei-o
ao aeroporto. Já próximo a Boyeros lhe pedi que transmitira
a Clinton uma saudação e que não existiam por nossas parte sentimentos de
hostilidade para ele. Bem medidas as palavras. Mais do que outra coisa, uma
cortesia com o visitante. Paguei isto caro. Um tempo depois recebo uma carta
feita pelo punho de Chrétien contando-me que tinha transmitido a Clinton o meu
desejo de melhores relações com ele. Não era exactamente isso o que lhe disse.
Não é o meu estilo; não se concilia com a minha atitude durante toda a vida.
Podia parecer uma ridícula súplica ao poderoso Presidente dos Estados Unidos.
Comecei a escrever também à mão uma carta a Chrétien lhe referindo que essa
mensagem não era minha mensagem. O assunto resultava embaraçoso. Não era fácil
conciliar o desgosto com os termos precisos com os que devia redigi-la, e de
certo modo o esclarecimento se tornava, ao mesmo tempo, em uma espécie de
crítica ao nosso amigo. Quase o consigo, mas finalmente abandonei a
idéia, guardei inclusive o projecto de carta, que talvez seja possível
encontrá-lo em algum velho caderno de apontamentos, e esqueci o assunto até
hoje. Nem seguer o seu delicado gesto de escrever-me do se punho consegui
reciprocar. Possivelmente pensou que eu era um mal-educado incorrigível.
Os meses passaram e
não havia notícia alguma do projeto haitiano que por nossa parte só esperava
uma breve resposta. O furacão Georges veio. Arrasou Santo Domingo e bateu à
vizinha Haiti, protegida só pelas montanhas dominicanas de
Quando ainda
sopravam as últimas rajadas do Georges, no norte do ocidente do país, a noite
chuvosa do 28 de Setembro, num discurso que proferi no encerramento do V
Congresso dos Comités de Defesa da Revolução, disse:
"Pergunto-lhe à
comunidade internacional: Querem ajudar a esse país, invadido e ocupado
militarmente há não muito tempo? Querem salvar vidas? Querem dar uma prova de
espírito humanitário? Falemos agora do espírito humanitário e falemos dos
direitos do ser humano.
" [...] Sabemos
como podem ser salvadas 25 000 vidas no Haiti todos os anos. É conhecido que
cada ano morrem 135 crianças de
[...]
"Partindo da
premissa de que o governo e o povo de Haiti aceitariam com prazer uma
importante e vital ajuda nesse campo, propomos que se um país como o Canadá que
tem relações estreitas com o Haiti, ou um país como a França que tem estreitas
relações históricas e culturais com o Haiti, ou os países da União Européia que
estão se integrando e já têm o euro, o Japão, fornecesse os medicamentos, nós
estamos dispostos a enviar os médicos para esse programa, todos os médicos que
sejam necessários, embora haja que enviar uma graduação completa ou o
equivalente."
[...]
"Haiti não
precisa de soldados, não precisa de invasões de soldados; o que necessita Haiti
são invasões de médicos para começar, o que Haiti precisa, além disso, são
invasões de milhões de dólares para o seu desenvolvimento."
Novembro de 1998.
Tem decorrido sete meses e não há notícias de Chrétien sobre os temas
referidos. O Ministro de Saúde de Canadá, Alan Rock visita Cuba. Reúno-me com
ele. Acabava de receber no Canadá à doutora Nkosazana Dlamini-Zuma, Ministra de
Saúde da África do Sul. Vinha extremamente impressionado por causa do que ela contou
sobre o trabalho dos médicos cubanos nas aldeias da África do Sul.
Explicou-lhe em
detalhes o programa de cooperação conjunta que propúnhamos. Percebi nele a um
homem sensível e capaz que compreendia as possibilidades e a importância de
tais programas.
Pedi-lhe
que agilizasse as gestões ligadas ao programa de cooperação conjunta no Haiti,
e uma resposta do Canadá ao que tinha proposto ao seu país não só pessoalmente
ao seu Primeiro-ministro, mas também publicamente. Se comprometeu a apresentar
um projeto ao Primeiro-ministro e ao Gabinete.
Em 4
de Dezembro Cuba envia pela sua própria conta, a primeira brigada de emergência
para assistir às vítimas do furacão Georges. Continuaram chegando as brigadas
médicas nas semanas posteriores, até alcançar o número 12 e um total de 388
cooperantes cubanos, e ainda os nossos amigos canadenses não tinham dado sinais
de vida. O programa médico que tínhamos próposto realizar juntamente com o
Canadá, ainda estava desenvolvendo-se com o esforço de Cuba, do governo do
Haiti e o apoio de Organizações Não-Governamentais.
No fim
de Fevereiro o Ministério das Relações Exteriores de Cuba informa ter sabido
por via não oficial, que o governo do Canadá doaria 300 000 dólares para o
programa médico de Haiti, notícia que logicamente nos agradou muito.
Em 4
de Março depois de mais de dez meses sem resposta oficial de Canadá. Porém,
aquele dia chegou uma notícia verdadeiramente surpreendente. O Ministro das
Relações Exteriores do Canadá, o Senhor Lloyd Axworthy, enviou uma carta ao
Ministro das Relações Exteriores de Cuba, Roberto Robaina que, entre outras
coisas, comunica:
[...]
"[...]
Tenho sido informado sobre uma lei recentemente aprovada pela Assembléia
Nacional cubana, em 16 de Fevereiro de 1999, intitulada "Lei para a
Proteção da Independência Nacional e a Economia de Cuba" encaminhada para
travar o aumento da delinquência e as actividades subversivas".
[...]
"Solicitei
a meus funcionários que preparem uma análise das recentes medidas adoptadas por
Cuba, incluída a próxima condena dos
membros do Grupo de trabalho da Dissidência Interna, visando determinar o
seu impacto no leque de actividades que temos empreendido conforme a Declaração
Conjunta bilateral. Até não for concluída esta avaliação, solicitei a meus
funcionários a se abster de realizar novas iniciativas conjuntas.
Escrever-lhes-ei aos meus colegas do Gabinete para lhes informar sobre esta
situação de forma a meditarem sobre os próprios programas de cooperação
bilateral com Cuba. No prazo imediato, parei a análise conjunta por parte de
meu departamento, de CIDA (Agência de Desenvolvimento Internacional do Canadá)
e de Health Canadá sobre a solicitação de Cuba para efetivar a cooperação
médica de um terceiro país no Haiti. "
"Os
dias vindouros serão importantes para analisar se Cuba escolherá a política de
aproximação e integração à comunidade global ou continuará no direção incerta
de dias recentes. Espero que o Senhor seja capaz de oferecer um sinal que
contribua para o esclarecimento das intenções de Cuba. Particularmente, tal
sinal seria de grande utilidade para garantir que os recentes acontecimentos
não se tornem uma preocupação infundada na Comissão dos Direitos Humanos em
Genebra."
Casualidade?
Pretexto para justificar fortes pressões de seus vizinhos do Sul?
Insensibilidade total face à tragédia haitiana? Não desejo fazer nenhuma
afirmação. Mas, como explicar que decorressem dez meses e durante esse tempo
todo não se der resposta oficial nenhuma, quando ainda não tinham acontecido os
fatos alegados, que motivaram tão drástica decisão e tão insolente carta?
Mesmo
quando não quero ofender a ninguém, nem mesmo ao ilustre autor da missiva, é
impossível deixar de assinalar o tom arrogante, prepotente, ingerencista e
vingativo com que foi redigida essa carta.
O que
a mim pessoalmente mais me amargurou, não foram as medidas punitivas e ameaças
contra Cuba, -a essas punições já estamos acostumados desde há 42 anos,
- senão mas o fato de que os 300 000 dólares, os quais nem sequer sei se eram
dólares norte-americanos ou canadenses- 0,64 centavos de dólar americano na
taxa de ontem 24 de Abril do 2001, visto que não tenho tido tempo para revisar
qual era a equivalência em 15 de Março daquele ano -jamais chegariam aos
doentes haitianos. Não podia conceber que fossemos punidos a custa talvez de
milhares de vidas, de crianças haitianas que teriam podido se preservar, visto
que nesse país, naquele momento estavam morrendo não menos de 25 000 por ano, a
maior parte de cujas mortes poderia ser evitadas com simples vacinas que
poderiam ser adquiridas com aqueles dólares, tanto norte-americanos quanto
canadense. Alguém, sem dúvidas, cometeu um grande erro.
Como
algo elementalmente lógico, eu tinha acreditado na informação extra-oficial que
me comunicaram do Ministério das Relações Exteriores. Nem sequer poderia
afirmar neste momento se foi ou não verdade.
Já não
há nada de se lamentar. Em Haiti trabalham hoje 469 doutores e trabalhadores da
Saúde cubana. Em dois anos e cinco meses, até o mês de Abril passaram por alí
861 colaboradores sem receber pelo seu serviço, nem um tostão do povo haitiano.
Eles dão atendimento médico a 5 072 000 dos 7 803 230 habitantes que tem o
país; 62% da população haitiana. Salvaram milhares de vidas e aliviaram a dor
ou restabelecido a saúde de centos de milhares.
Este
ano foi iniciada, com a entrega de todas as vacinas por parte do Japão com a
participação do UNICEF, a primeira fase da campanha massiva de vacinação contra
oito doenças imuno-preveníveis, onde Cuba assume a execução do programa com o
pessoal de saúde que está naquele país, que ascenderá as 600 no decorrer do ano
presente. Nós sabemos, também, que no futuro, e com o esforço combinado entre a
França, Japão, Cuba e Haiti, se prepara uma nova campanha de vacinação que em
cinco anos propiciará em esse, que esse país extremamente pobre e do Terceiro
Mundo tenha atingido um nível imunitário de 95%.
Com a
vitória obtida pelo Brasil a África do Sul contra os preços inacessíveis dos medicamentos
contra a AIDS, acho que não é distante o dia, em que os haitianos também possam
ser protegidos contra esse terrível flagelo, mediante apoios de governo com
recursos financeiros, as instituições de Nações Unidas e Não-Governamentais.
O Haiti
não é o único país com o qual o povo cubano está cooperando em programas de
saúde sob o mesmo princípio. Fazem já 15. Nesses programas cooperam 61
organizações Não-Governamentais com a participação de mais de 2 272
trabalhadores cubanos da saúde, deles 1 775 médicos.
Já
ninguém poderá sabotar a cooperação de Cuba com outros países do Terceiro
Mundo. Fatos e não palavras. Ação rápida e não esperar pelas calendas gregas
quando há os seres humanos de países pobres que estão morrendo todos os dias a
toda hora. À formação de médicos com espírito de sacrifício, solidários e
abnegados, o nosso pequeno país presta igualmente um especial apoio. Avançar é
possível, derrotar calamidades e aliviar a tragédia humana que prejudica a
tantos centos de milhões de pessoas, não são objetivos inalcançáveis.
Hoje
agradeço as conversações que tive com Chrétien. Serviram para provar que as
iniciativas são possíveis e também as cooperações conjuntas com a participação
de dois, três ou muitos países. Também demonstra que as horas que investimos
tanto ele quanto eu, não foram inúteis, e eu continuei os seus conselhos
trabalhando ainda com mais afinco pelos direitos humanos, por salvar vidas, e
tentando desactivar gigantescas minas antipessoais que colocam ao nosso mundo
nà beira de grandes explosões.
Pequenos exemplos do que qualquer pequeno
país pode oferecer, são hoje mais importante que grandes convénios que os
poderosos convertem em letra morta e grandes atos de demagogia e atuações
publicitárias à procura de satisfazer vaidades e ambições pessoais.
Estou
certo de que Trudeau jamais teria dito que ficou 4 horas aconselhando a alguém
que não os tinha solicitado, nem procuraria justificações para excluir de uma
reunião cimeira a um país digno que jamais solicitou a sua inclusão, para
assinar um acordo que jamais teria assinado.
A história dirá que tem a razão
(Aplausos).