Mesa-redonda informativa sobre a crise argentina e a política lambe-botas do Ministério de Relações Exteriores desse país, efetuada nos estúdios da Televisão Cubana, em 30 de janeiro de 2002.
(Versões taquigráficas – Conselho de Estado)
Randy Alonso. – Muito boa tarde, estimados telespectadores e radioouvintes.
A crise econômica, política e social da Argentina continua se aprofundando, enquanto o Ministro de Relações Exteriores daquele país viajou até Washington para submeter-se às exigências da administração norte-americana, incluindo entre as moedas de troca, o ataque abjeto e vergonhoso a Cuba.
Desenvolvemos esta tarde uma mesa-redonda informativa sobre a crise argentina e a política lambe-botas do Ministério de Relações Exteriores daquele país. Para isso, acompanham-me, no painel, o companheiro Felipe Pérez Roque, ministro de Relações Exteriores; Juan Antonio Fernández, diretor de Assuntos Multilaterais de nosso Ministério de Relações Exteriores; o companheiro Francisco Soberón, ministro-presidente do Banco Central de Cuba; e os jornalistas Eduardo Dimas, comentarista internacional do Sistema Informativo da Televisão Cubana, e Lázaro Barredo, jornalista do Trabalhadores.
Como de hábito, acompanham-nos, no estúdio, companheiros de diferentes órgãos, representantes do Ministério de Relações Exteriores, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, de nossa Procuradoria Geral da República.
Acompanham-nos, de maneira especial, esta tarde, nosso Comandante-em-Chefe, Fidel Castro; o companheiro Carlos Lage Dávila, membro do Burô Político, e uma delegação do Partido Esquerda Unida, da Espanha, que está visitando nosso país, encabeçada por Gaspar Llamazares Trigo, Coordenador Geral dessa organização política espanhola; a senhora Laura González Alvarez, eurodeputada por essa organização; Ginés Fernández González, Secretário de Organização da Esquerda Unida, e Pedro Chávez Giraldo, assessor do Coordenador Geral da Esquerda Unida.
(Transmitem-se imagens sobre a situação argentina.)
Poupador.- Estamos contra esse ajuste, que nos atinge a todos. Por isso nós estamos aqui. Não tenho nada para dar de comer a meus filhos.
Poupador.- Que devolvam o dinheiro, é nosso; o dinheiro que lhes falta foi roubado, para que o mundo entenda.
Poupador.- Este modelo está matando a educação e a saúde pública, que são as duas coisas para o povo.
Randy Alonso.- E enquanto centenas de poupadores, em meio a forte aparato policial, reclamavam com um panelaço, esta manhã, em frente ao Ministério de Economia, a devolução de seus depósitos em dólares, ontem culminou uma visita a Washington do Ministro de Relações Exteriores argentino, Carlos Ruckauf.
Tenho aqui um cabograma chegado de Washington, que diz:
"Depois de reiterados esforços para demonstrar à Casa Branca que a Argentina continua sendo um aliado incondicional dos Estados Unidos, o chanceler Carlos Ruckauf encerrou esta terça seus contactos em Washington, segundo informações da CNN."
Proponho a nossos telespectadores e radioouvintes, ver a informação que a CNN em espanhol e a Televisão Espanhola transmitiram na noite de ontem e no dia de hoje, sobre a visita do Chanceler argentino a Washington e seus contactos com os dirigentes norte-americanos.
Repórter.- O chanceler argentino Carlos Ruckauf mostrou, nesta terça-feira, sinais do provável estresse sob o qual se encontra.
Carlos Ruckauf.- Sim, bem curto, porque vocês sabem que tenho uma forte enxaqueca.
Repórter.- É que tem sido uma agenda apertada; desde segunda-feira mantendo reuniões na Casa Branca, no Departamento do Tesouro, com o Secretário Paul O’Neill, e no Departamento de Estado, com o secretário Colin Powell.
Carlos Ruckauf.- Entregamos uma carta pessoal do Presidente Duhalde ao Presidente Bush, ratificando nosso caráter de aliados extra-OTAN e ratificando, também, que vamos para uma economia livre na Argentina.
Repórter.- Os argentinos vêm com uma maleta cheia de boas intenções, à espera de que a Casa Branca avalie se a maleta pesa o suficiente.
Por exemplo, Ruckauf disse que a Argentina continuará apoiando o projeto da Área de Livre Comércio para as Américas, ALCA.
Martín Redrado.- Argentina reafirma sua vontade de integração, reafirma o cronograma da ALCA. Temos temas difíceis à frente, como o tema agrícola, que hoje nos separa; mas nossa vontade é cumprir esse calendário.
Repórter.- Mas, para ser parte disso, de concretizar a ALCA em 2005, Argentina insiste em que necessita reativar sua economia, e parte essencial disso é a indústria do turismo.
Martín Redrado.- Hoje solicitamos ao secretário Powell uma revisão do alerta turístico dado no mês de dezembro, dizendo que este é um tema absolutamente superado.
Repórter.- O turismo sozinho, sem dúvida, não dará à Argentina todos os recursos necessários para resolver sua crise.
Por isso, a atitude do governo do Presidente Bush é, por enquanto, escutar, analisar e atuar; mas somente quando esteja convencido de que o plano argentino tem peso suficiente.
Repórter.- A Argentina quer, o quanto antes, ajuda financeira para sair da crise. Nessa trama, o apoio estadunidense é fundamental, o que foi esclarecido pelo Ministro de Exteriores argentino, tanto ao Secretário de Estado norte-americano Colin Powell, como ao do Tesouro Paul O’Neill.
Carlos Ruckauf entregou-lhes uma carta pessoal do presidente argentino Eduardo Duhalde a George Bush.
Carlos Ruckauf.- Entregamos uma carta pessoal do presidente Duhalde ao presidente Bush, retificando nosso caráter de aliados extra-OTAN e ratificando, ademais, que vamos para uma economia livre na Argentina, para o bem-estar de nossos povos.
Repórter.- Nessa carta, Duhalde pede também a Bush compreensão ante a crise sofrida pelo país e solicita que o governo estadunidense considere, com a maior urgência, fórmulas de assistência rápida para a Argentina. Dessas ajudas de que necessita o país se voltará a falar hoje em Buenos Aires.
Nesta quarta-feira, chega à Argentina um representante do Fundo Monetário Internacional, para inteirar-se de detalhes concretos do plano de Duhalde para sair da crise.
Ontem o mandatário argentino analisou a delicada situação de seu país com o presidente uruguaio, Jorge Battle, enquanto continuam os protestos em frente aos bancos, pelas restrições do famoso Corralito.
Poupador.- Por que me paga em pesos, se no outro guichê vende os dólares? Por quê? Não consigo entender.
Repórter.- Protestos diante dos bancos e também nas estradas. Dezenas de desempregados fecharam ontem vários acessos à capital, para exigir comida e trabalho.
Randy Alonso.- E a visita do Chanceler argentino a Washington terminou com uma forte dor de cabeça. Por um lado, está a realidade de seu país e, por outro, a missão que foi cumprir em Washington e suas declarações, depois dessa visita que culminou no dia de ontem e que não só recolheu esses elementos que vocês puderam apreciar nesses dois materiais da CNN em espanhol e da Televisão Espanhola.
A causa de nossa mesa-redonda está também em outras declarações que a Chancelaria argentina realizou no dia de ontem, em razão dessa visita de seu Chanceler a Washington.
Eduardo Dimas esteve acompanhando, através dos cabos, essas informações e nos oferece detalhes sobre isso.
Eduardo Dimas.- Com um pequeno detalhe primeiro: a causa da enxaqueca pode não ser tanto a preocupação pela situação argentina, como talvez por baixar demais a cabeça. Inclusive não seria demais estudar a possibilidade da relação entre a enxaqueca e a genuflexão. Creio que seria oportuno, talvez esse senhor o agradecesse.
Ruckauf foi com vários objetivos. O objetivo fundamental, o objetivo econômico, inclusive, preparar as condições para o Ministro da Fazenda, que é quem vai apresentar o plano econômico que já foi anunciado, e que vão apresentar no próximo sábado. E dentro disso esteve Cuba, o tema cubano.
Na reunião com Colin Powell – e sobre isso há uma grande quantidade de informação –, o Chanceler argentino, por exemplo, segundo a AFP, para citar apenas isso e ser o mais breve possível, colocou:
"Os Estados Unidos e a Argentina aproximam posições sobre a solução da crise e direitos humanos em Cuba."
"ANSA. – Estados Unidos - Argentina, acordo sobre direitos humanos em Cuba."
"Notimex. – Argentina assumirá posição de Estados Unidos" – parece-me que este é o título mais exato – "sobre direitos humanos em Cuba". E não é a Argentina, o povo argentino, é o Ministério de Relações Exteriores, creio que é necessário fazer esse esclarecimento.
"Reuters. – Argentina diz colaborar com os Estados Unidos sobre direitos humanos em Cuba", ou seja, o Ministério de Relações Exteriores diz colaborar.
De que se falou? Bem, tudo parece indicar que neste ano será apresentada uma nova moção de condenação, como fez a República Tcheca nos últimos anos, e tudo parece indicar também que a Argentina, que no ano passado a apoiou, este ano talvez seja quem a apresente, não se sabe exatamente, porque diz que não se chegou a nenhum acordo sobre como se vai fazer. O que, sim, existe é uma total adesão, por parte do Ministério de Relações Exteriores argentino, à posição norte-americana, e disse o porta-voz, Martín Redrado, que "não há ação concreta decidida, isso será visto depois pelos respectivos funcionários".
Acrescentou que:
"Na reunião, o que ficou estabelecido foi uma visão conjunta, que é a defesa dos direitos humanos do povo cubano, da sanção à única ditadura que resta hoje na América Latina e, é claro, trabalhar para que o povo cubano seja livre."
Isto se repete em todos os cabos que tenho aqui na mesa.
Agora, eu quero recordar umas palavras do presidente Duhalde quando, junto com a Igreja, chamou a um diálogo nacional, cito suas palavras:
"Nosso ponto de partida é um presente de extrema exclusão, é preciso acabar com a indigência, que é o mínimo", indicou o mandatário, antes de admitir que no país – cito – "foram violados os direitos humanos à vida, à saúde, à alimentação, a vestir-se e à educação."
De que direitos humanos nos fala o senhor Ruckauf?
Definitivamente, Randy, como te dizia no princípio, eu acredito que está se apresentando a situação, que não me parece que seja inesperada, no sentido de que este senhor assumiu uma posição extrema em relação a Cuba. Bem, temos aí o antecedente, que o outro Chanceler também fez o mesmo, como fizeram também os anteriores. Lembremo-nos das relações carnais, de que falava um já falecido ex-chanceler, com os Estados Unidos.
Randy Alonso.- Bem, a isso eu posso acrescentar, Dimas, detalhes de um cabo que tenho da DPA.
Diz que, além da crise argentina, depois desta reunião com Powell, o único tema abordado foi Cuba. Assinala: "Falou-se claramente da política de direitos humanos, da defesa dos direitos humanos do povo cubano, a posição comum do governo argentino e do governo estadunidense, uma posição comum que vamos sustentar nas Nações Unidas", explicou Martín Redrado, que é o secretário de Relações Econômicas Internacionais da Chancelaria argentina e que atuou como porta-voz nestas declarações. Bem, como viram, o Chanceler tinha enxaqueca.
Disse Redrado mais adiante: "Falou-se de trabalho conjunto, de uma visão conjunta dos direitos humanos do povo de Cuba, da defesa dos direitos humanos do povo cubano, da sanção à única ditadura que resta na América Latina, de trabalhar para que o povo cubano seja livre", acrescentou.
Diz mais adiante o cabo: "Um correspondente de um diário brasileiro em Washington resumiu sua impressão em uma frase: ‘Foi o preço’.
"Os jornalistas ficaram com muitas dúvidas, mas o Chanceler não quis responder a perguntas, indicando que tinha dor de cabeça, e Redrado foi avisado de que devia ir, porque tinham pouco tempo para chegar ao aeroporto, de onde a delegação partiu para Roma, para continuar a viagem.
"Um correspondente de uma agência internacional, que ficou sem as respostas que buscava, perguntou aos jornalistas argentinos que ali estavam, se tinha idéia de por que havia surgido o tema Cuba em uma rápida reunião de apenas meia hora, com Powell, quando a Argentina está submersa em um caos financeiro, econômico, político e social.
"Os jornalistas argentinos sorriram, apenas um deles respondeu com uma pergunta: ‘Não é óbvio?’ "
Creio que está demais o que nós podemos dizer, mas o diz também a própria imprensa argentina.
Hoje saíram vários comentários na imprensa argentina, e creio que seria interessante, Lázaro, que você comentasse esses mesmos artigos publicados pela imprensa argentina, e que nos esclarecesse um pouco sobre a figura de Carlos Ruckauf, esse novo chanceler da Argentina, que foi apresentar sua posição a Washington e fazer seu ato de genuflexão, como dizia Dimas.
Lázaro Barredo.- Como o Chanceler está presente, não gostaria de comprometer o Ministério de Relações Exteriores com o que vou dizer. Mas, realmente, o sentimento geral hoje nas ruas, o que muitas pessoas dizem, é que parece haver uma competição, na Chancelaria argentina, quanto ao tema anticubano, porque primeiro foi o falecido Guido di Tella, que falou da aliança extra-OTAN, as "relações carnais", e comprometeu as relações dos Estados Unidos em matéria de direitos humanos relativas a Cuba, parecendo que não havia nada mais importante.
Chegou então o chanceler Giavarini e falou das "relações intensas", aumentando a aposta de Guido Di Tella, e agora vem Ruckauf e fala de "poligamia". Há que ver o que exatamente ele quer dizer com isso. O certo é que se vendeu, abriu completamente as pernas para os Estados Unidos, e o resultado dessa atitude são as declarações de Redrado, que hoje aparecem na imprensa argentina.
Realmente, a enxaqueca, Dimas, eu compreendo, porque o homem teve de quebrar completamente a cabeça, para ver como apresentava o problema da Argentina ao secretário do Tesouro norte-americano, ao senhor Paul O’Neill, e não sabia como. Diz Página 12 que Ruckauf esteve muitas horas ensaiando e planejando o discurso que ia apresentar, e a única maneira que lhe ocorreu para apresentar o grave problema que têm foi uma piada para quebrar o gelo; disse: "Venho em nome dos encanadores argentinos para apresentar-lhe este pedido", porque O’Neill, na época de De la Rúa, havia dito que não podia dar mais dinheiro, que tinha de defender os interesses dos encanadores e dos carpinteiros norte-americanos. O sujeito estava quebrando a cabeça, por isso acabou con enxaqueca.
Mas hoje Página 12 relata como foi tudo, e diz:
"Entusiasmado, o vice-chanceler econômico Martín Redrado contou ontem que, na reunião de Carlos Ruckauf com o secretário de Estado Colin Powell, falou-se claramente dos direitos humanos do povo de Cuba. A fórmula, normalmente, é um eufemismo para indicar como votará a Argentina.
"A Redrado não é necessário interpretar," – diz Página 12 – "foi transparente. Disse que ambos os governos coincidiram sobre a posição que vamos ter em conjunto nas Nações Unidas. Foi inclusive além", diz Página 12. "Se suas declarações foram registradas corretamente, disse que a Argentina se comprometeu a trabalhar para que o povo cubano seja livre. Ou seja, não é que a Argentina, junto com outros países, simplesmente exortará Cuba a liberalizar seu sistema político, mas que se situará na primeira linha de combate. Nem mesmo Menem, em suas relações, carnais, colocou coisas de maneira tão crua. Se agora se segue a linha de Redrado, a Argentina marcará uma diferença com o resto da América latina, o que não convém ao país, exatamente quando a chave da política exterior deveria ser acumular apoios, e não perdê-los. O contra-argumento poderia ser que a Argentina necessita do apoio financeiro do Fundo Monetário, e antes precisa da piscada do Tesouro norte-americano.
"Se é assim, seria inútil mimetizar-se com o setor mais duro da comunidade cubano-americana dos Estados Unidos. A Argentina tem, lamentavelmente, mas assim é a realidade, uma arma muito mais poderosa que sua posição em relação a Cuba. Se este país entra em uma etapa de inestabilidade incontrolável, todo o Cone Sul irá segui-la. Washington teme tornar inestável uma zona do mundo que não era.
"Esse é o grande argumento argentino."
É assim que Pagina 12 comenta hoje essas declarações de Redrado e a referência de Ruckauf.
Quem é Ruckauf? Porque, realmente, para falar de direitos humanos, chama a atenção como alguns políticos – e este é um caso –, com uma tremenda imoralidade e com dois pesos, querem medir outras nações.
Ruckauf foi vice-presidente do governo argentino, tem responsabilidade nos acontecimentos que estão ocorrendo naquele país. Foi governador da província de Buenos Aires, diz-se agora que aceitou o cargo de Ministro de Relações Exteriores precisamente para fugir da situação criada nessa província, que se converteu em uma província em crise e com altos níveis de pobreza e marginalização, que é a herança deixada por esse homem, como governador.
Ruckauf – para dar um exemplo, porque poderia estar destacando aqui uma enorme quantidade de aspectos – é o maior responsável nas denúncias por abusos policiais, que se incrementaram durante seu mandato como governador.
Apenas para dar uma idéia, nos anos 1999 e 2000, foram fuzilados pela polícia de segurança cerca de 60 crianças ou adolescentes menores de 17 anos, e este homem saiu em defesa, precisamente, de seus funcionários da Segurança. Disse cinicamente diante da Imprensa: "Não vou fazer julgamentos negativos sobre meus funcionários", e justificou uma medida bárbara como esses processos extrajudiciais que cercearam a vida a 60 jovens e adolescentes.
Mas, se desejamos realmente uma medida do cinismo deste senhor, que tanto fala de direitos humanos, destaca-o a imprensa argentina, sobre um professor que esteve durante 100 dias em frente ao Congresso da província, em uma greve de fome. A greve se iniciou porque o governador Carlos Ruckauf lhe recusou sua reintegração como professor titular e se negou, ademais, a abrir uma investigação sobre uma série de denúncias feitas por esse professor, que atingiam a funcionários do governo provincial.
A imprensa argentina qualifica de insolente e lamentável a ação desse governador, que, pelo que parece, não tem fim: pelo final do ano passado, esse professor que estava em greve de fome recebeu, dirigida diretamente a ele, levada por um funcionário, uma carta de Carlos Ruckauf, o atual reluzente chanceler argentino, por motivo da aproximação das festas natalinas e de Ano Novo, uma carta mandada diretamente pelo governador, para desejar-lhe Feliz Natal. Pode haver cinismo maior?!
Isso pode retratar esse de quem falamos, ou seja, essa grosseira piada com um professor que estava há cem dias em greve de fome, precisamente porque este homem lhe estava recusando sua reintegração como professor titular.
Randy Alonso.- A isso, pode-se acrescentar também que o governo de Ruckauf, em Buenos Aires, foi considerado o mais corrupto da história dessa cidade e, é óbvio, frente à situação que a Argentina apresenta hoje.
Obrigado por seu comentário.
As declarações do chanceler Ruckauf e de seu porta-voz, o vice-chanceler argentino, ontem em Washington, devem ser entendidas dentro da lógica da política que os Estados Unidos vêm utilizando há mais de uma década, na manipulação política dos direitos humanos contra nosso país, um tema que tem importantes antecedentes, Gostaria que Juan Antonio Fernández, diretor de Assuntos Multilaterais de nosso Ministério de Relações Exteriores, nos recordasse esses importantes antecedentes da manipulação política que os Estados Unidos fizeram do tema dos direitos humanos no caso de Cuba.
Juan A. Fernández.- Sim, Randy.
Parece-me útil fazer referência, primeiro, ao que temos visto e escutado dos comentários feitos pelos outros participantes do painel.
Diz-se que o chanceler argentino, Ruckauf, chegou a Washington com uma maleta carregada de pedidos – certo –, e encontrou do lado de lá outra maleta cheia de condições e, entre estas, uma bastante prioritária, que era a condição do voto contra Cuba na Comissão de Direitos Humanos; ou seja, o compromisso público da Argentina de votar contra Cuba na Comissão que logo vai começar, durante o mês de março e abril deste ano.
Por que esta prioridade? Por que esta insistência? É fácil compreender: O tema dos direitos humanos e as manobras contra Cuba em Genebra se converteram e são, de fato, a última justificativa que está restando a esses setores, cada vez mais minoritários dentro dos Estados Unidos, que pretendem legitimar assim sua política genocida de bloqueio contra o povo cubano; daí a prioridade que deram a esse assunto.
Isso não começou ontem, tem muitos antecedentes. Já desde o final dos anos oitenta, é preciso lembrar, o então embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas, o general Vernon Walters, falava da existência de dezenas de milhares de presos políticos em Cuba, de dezenas de milhares de torturados em Cuba; ou seja, fabricou-se toda uma armação artificial, com muito dinheiro, seus meios de informação, para criar essa imagem de demonização de Cuba e de sua Revolução, do projeto que construímos aqui durante todos esses anos, Essa foi a tese no final dos oitenta.
Tentaram, primeiro, fazer passar sua resolução na Assembléia Geral; aí não puderam, o mundo era outro, a correlação de forças era diferente.
Mudaram-se, então, para Genebra, para a Comissão de Direitos Humanos. Por quê? Um órgão menor, uma composição mais restrita, mais fácil de manipular, de pressionar, de torcer vontades, e aí começaram os ataques. Esses foram os anos 1987, 1988, 1989; nesses anos ainda não conseguem aprovar a Resolução. Definitivamente, a correlação de forças também era um pouco diferente.
Mas, enquanto faziam isso em Genebra, ao mesmo tempo tentavam criar aqui, ou pretendiam criar aqui, uma quinta-coluna de assalariados a seu serviço; ou seja, a contra-revolução enfeitada do fetiche de defensores de direitos humanos, para também a partir daqui contribuir para seus objetivos. Não puderam nem uma coisa, nem outra, durante o ano de 1988, 1989, essa Resolução não pôde ser aprovada.
É somente em 1990 – o que é fácil de explicar – que conseguem aprovar a Resolução; em 1990, porque o mundo já havia mudado: desmoronou o campo socialista, esse mundo que conhecemos em algum momento, mudou a correlação de forças; os países latino-americanos estavam em uma posição mais vulnerável e mais débil. É preciso dizer, inclusive, que, nos anos 1988, 1989, esses países – alguns deles latino-americanos – resistiram a certas pressões, chegando inclusive a votar contra essas tentativas de satanizar e isolar a Cuba na Comissão.
Pois bem, em 1990 conseguem aprová-la, com essa nova correlação de forças. Foi o ano dos vira-casacas que conhecemos, os da Europa central e oriental.
Também é preciso recordar – porque sempre é bom recorrer à história – a ação do governo argentino, que recebeu a ordem do Governo dos Estados Unidos e, à última hora, mudou a instrução de sua delegação, que, tendo votado contra no ano de 1989, passou a votar a favor, após um recado telefônico de Washington, instruindo como devia votar a Argentina.
Aqui eu gostaria de deter-me, porque algo caracterizou esse processo das resoluções e do circo que se monta, a cada ano, contra Cuba em Genebra, que é a diplomacia do recado telefônico. Mandam dizer como você tem de votar; mas parece que já não é suficiente. Há pouco falavam por aí da genuflexão; já é tanta, que agora tem de ir a Washington declarar o voto. Que classe de Chancelarias, nem em suas capitais dizem as coisas! Vão lá para dizer que é que vão fazer.
Nos primeiros anos dos noventa, Randy, depois que se aprova essa Resolução, os Estados Unidos continuam apresentando-a pelas vias de sempre, ou seja, buscando uma condenação a Cuba, recriando toda essa fantasia que inventaram e que, definitivamente, não foi a nenhuma parte, porque esse exercício começou a perder apoio e credibilidade: por um lado, a resistência de Cuba, de seu povo, nesses anos difíceis, garantindo que estaríamos aqui, e defendendo até o final nossas conquistas; não puderam convencer a essa Comissão. A cada ano, a Resolução era aprovada com menor número de votos, e também aumentava a resistência dos países do Terceiro Mundo ante essas claríssimas manobras.
Esse foi um exercício desgastado, que seguiu assim durante todo o primeiro decênio dos noventa.
É bom destacar, Randy – creio que é útil reiterá-lo –, que não se estava mais discutindo o tema dos direitos humanos em Cuba, ninguém mais acreditava nessa história, simplesmente; o que estamos batalhando em Genebra é nosso direito a nos organizarmos como desejemos, a dar-nos um sistema próprio, um sistema político e social como o que temos. Isso é o que se questiona ali e isso é o que nunca vamos aceitar.
Esse exercício foi perdendo a credibilidade, como eu explicava agorinha, até o ano de 1997. No ano de 1998, a Resolução foi claramente derrotada, não dava mais para aceitar esse conto da carochinha – vamos dizer assim –, e acabou de uma vez esse exercício. Volta em 1999, em uma nova modalidade, quando Washington recruta a República Tcheca para fazer o trabalho sujo na Comissão de Direitos Humanos, e é assim que a República Tcheca, nos últimos três anos – nosso povo está muito bem informado, porque nestas mesas se debateu esse assunto –, tem sido a que apresenta a Resolução.
No ano passado, a Resolução foi aprovada por dois votos de diferença, e assim tem sido nestes três anos, um, dois votos, e só conseguem – essas vitórias de Pirro – à força das mais grosseiras pressões sobre os membros da Comissão de Direitos Humanos.
Vale recordar que a República Tcheca, no ano passado, já no auge da humilhação, havia incluído um paragrafinho aí com uma discreta e muito tímida crítica ao bloqueio, como se pudesse conciliar uma coisa com a outra, e nem isso puderam manter, bastou um telefonema de Washington ao presidente Havel, para que aquilo desaparecesse e pusessem mais do mesmo, o de sempre.
Essa é a situação em que nos encontramos, até o ano passado, quando a Resolução foi aprovada, repito, por dois votos de diferença, 22 votos contra 20.
Agora, o que aconteceu? Qual é a situação atual? Em que ponto nos encontramos? Bem, em primeiro lugar, é preciso lembrar a exclusão dos Estados Unidos da Comissão de Direitos Humanos, depois de 50 anos, algo inédito na história das Nações Unidas; perderam sua cadeira aí, simplesmente porque as pessoas já estavam fartas de seu comportamento, de sua prepotência, de sua insolência na Comissão. Há que lembrar que os Estados Unidos chegaram a votar sozinhos contra uma resolução de direito à alimentação, ou só para não condenar a Israel pelas violações massivas e flagrantes de direitos humanos nos territórios árabes ocupados e na Palestina, e por uma política unilateral repudiada por toda a comunidade internacional, ao que se uniram muito claramente as grosseiras pressões para aprovar a Resolução anticubana.
Os Estados Unidos ficaram excluídos da Comissão; este ano não é membro, pela primeira vez em 50 anos; a isso se soma o desgaste e o descrédito que teve a República Tcheca, que ninguém pode se convencer de que tenha qualquer interesse em direitos humanos, e sim que simplesmente está prestando um serviço a seu cliente.
A República Tcheca já esteve dando sinais de fadiga e cansaço, talvez da intenção de não continuar com esse exercício e, portanto, estão atarefados buscando outro para fazer esse trabalho, o de apresentar a Resolução contra Cuba.
Nestes dias, vários enviados – todo ano é a mesma coisa, está é uma história que se repete –, um vice-chanceler tcheco está fazendo umas viagenzinhas por aqui, por esta área, buscando a quem recrutar – depois o Ministro falará mais sobre isso –, mas é mais dos mesmo, está buscando a quem recrutar para fazer o trabalho sujo contra Cuba.
Esta é a situação em que nos encontramos.
Sabemos que, no ano passado, quatro países latino-americanos votaram contra Cuba; este ano, a composição da Comissão é mais ou menos similar. Quem são os membros latino-americanos? Chile, México, Costa Rica, Cuba, Guatemala, Peru, Uruguai, Venezuela, Argentina, Brasil e Equador. Esta é a situação que temos neste minuto, em que estou explicando como as gestões estão se intensificando nesta área do mundo. Por quê? Vamos vê-lo mais adiante.
Randy Alonso.- Evidentemente, em sua explicação, Juan Antonio, você nos deu elementos importantes de como foi um exercício que aumentou seu desprestígio, esse que os Estados Unidos levaram na Comissão de Direitos Humanos. E se desprestigiada está, obviamente, a política norte-americana nessa comissão, mais desprestigiada, a política dos que foram utilizados para apresentar essas resoluções, e por isso há novas manobras norte-americanas dirigidas à nossa região, e creio que seria muito importante que nosso chanceler, Felipe Pérez Roque, informasse a nosso povo, informasse à opinião pública como está se movendo a política norte-americana, dirigida a uma condenação contra nosso país na Comissão de Direitos Humanos que será realizada nos próximos meses.
Felipe Pérez.- Sim, Randy, como explicava o companheiro Juan Antonio, estamos em um momento novo, decisivo, digamos, da manipulação do tema dos direitos humanos contra Cuba; estamos nessa situação na qual se está buscando um proponente para a Resolução. Os Estados Unidos não são membro da Comissão, não poderia apresentá-la este ano; a República Tcheca deu sinais de que o exercício é incômodo, desgastante, tem um custo para eles em suas relações, inclusive com os países da União Européia, com alguns dos quais teve, no ano passado, sérias divergências pela redação do texto, exatamente porque eles não têm independência para decidir o que se põe na Resolução, que parágrafo se tira ou se põe, isso é uma atribuição que se decide no Departamento de Estado norte-americano.
Estamos nesse ponto. Então, o que está acontecendo e o que viemos aqui denunciar claramente, diante de nosso povo, diante da opinião pública? Está em marcha uma nova manobra contra Cuba, uma conspiração que se tenta manter em segredo, escondida da opinião pública dos países da América Latina e da comunidade internacional.
Estão se realizando intensas gestões dos Estados Unidos com as chancelarias latino-americanas: reuniões no mais alto nível, intensas viagens; delegações, emissários que viajam de uma lugar a outro; países latino-americanos participando, levando mensagens a outros países; consultas realizadas, pelo Departamento de Estado, junto a algum país europeu com forte influência na América latina, para ajudá-los a organizar o tema de que vários países latino-americanos apresentem o texto; gestões dos tchecos, que andam desesperados, buscando seu substituto, com o temor de que, se não aparece, volte a tocar-lhes este ano apresentar a Resolução contra Cuba.
Viagens dos tchecos pela América Latina, conciliábulos secretos, reuniões de corredores, projetos de documentos que foram sendo elaborados, sabemos.tudo tudinho. Não se deve subestimar nossa capacidade de inteirar-nos das manobras contra Cuba. Não se devem subestimar os amigos que Cuba tem em todo o mundo e o prestígio que a Revolução estimula, e o rechaço que esta manobra provoca em muita gente honrada no mundo; e sabemos, estamos informados, sabemos muito mais do que talvez imaginem os conspiradores.
Além da Chancelaria argentina, cuja cooperação pensavam arrancar, em meio à desesperada crise a que levaram aquele país, há duas chancelarias latino-americanas sobre as quais se moveu ativamente a diplomacia norte-americana e nas quais depositam suas maiores esperanças. Há outras com as quais o Departamento de Estado não tem esperança nenhuma de êxito; das duas mencionadas, uma delas a está apoiando com verdadeiro entusiasmo.
Cuba considera importante que esses acontecimentos sejam conhecidos, e que essas gestões, cujos promotores tentam manter em silêncio e tentam impedir que sejam reveladas até o momento de sua concretização, sejam conhecidas pela opinião pública.
Mas isso que vimos é a parte visível de uma conspiração na qualestá participando mais gente. Há chancelarias latino-americanas às quais estão impondo este como primeiro ponto na agenda para a reunião com o Departamento de Estado, e sabemos também de chancelarias às quais foram ditos os requisitos, entre os quais este é o primeiro, apenas para ter uma reunião em Washington. Vamos batalhar resolutamente contra essa manobra, e temos todo o direito, toda a energia e a autoridade moral para fazê-lo. Hoje nos limitamos a formular esta denúncia em termos gerais, mas estamos preparados para oferecer à opinião pública internacional todos os detalhes da infame conspiração, a qualquer instante, se é preciso.
Desse plano e dessas gestões foi que surgiram, prematuramente – chegaram em um momento realmente bastante inoportuno para a Argentina –, essas declarações e essas estranhas relações, esse tratamento do tema de Cuba ontem e dos direitos humanos em Cuba, em uma reunião de meia hora com o secretário Powell, supostamente para discutir as questões que mais interessam hoje à opinião pública argentina, que têm a ver com a saída da crise.
É preciso dizer que o fato de um grupo de países latino-americanos apresentar essa Resolução contra Cuba em Genebra tem sido sempre uma ilusão dos diferentes governos dos Estados Unidos; eles nunca conseguiram, mas sempre houve a ilusão, porque dava mais credibilidade, tornava mais verossímil essa manobra. No ano passado, há que dizer que tentaram com toda a força, e este ano verificamos que as pressões começaram muito mais duras e com uma antecedência muito maior.
Devo acrescentar uma reflexão sobre o que ocorreu no dia de ontem em Washington, e sobre as declarações do senhor Martín Redrado, secretário de assuntos econômicos da chancelaria argentina, que acompanhava o chanceler Ruckauf, e que atuou como porta-voz da delegação argentina. Como vocês vêm, este não é um funcionário que atende aos temas dos direitos humanos, nem aos temas políticos, ele atende aos assuntos econômicos, mas atuou como porta-voz, e vimos aqui suas declarações.
Ao ouvir as declarações e ver as imagens que vimos, senti pena; senti pena pela Argentina, por seu povo, ao qual dedicamos tanta simpatia, tanto respeito; com o qual temos sido tão solidários, e do qual recebemos também tanta solidariedade. Me deu pena, realmente, ver uma cena tão lamentável como essa que vimos, ler declarações como as que lemos.
Eu não acreditava que fosse possível, digo com toda a franqueza, tanta vocação para o ridículo. Não acreditava que fosse possível não haver um mínimo de senso comum para se apresentar de certa maneira, com certa compostura pública. Realmente, nunca vi uma dose tão elevada de falta de coragem, porque é preciso ter muito pouca coragem, pouco senso de dignidade própria, para desempenhar um papel tão abjeto, como o que vimos no dia de ontem.
Eu acreditava já ter visto de tudo, nesses três anos em que estou no Ministério de Relações Exteriores, mas ontem vi um novo patamar, um novo e excepcional exemplo em matéria de falta de coragem, de valor político, de falta de senso de dignidade nacional. Alguém pensaria que é impossível que o representante de um país, com a história, as tradições da Argentina, fosse desempenhar esse papel, que provocou na imprensa todo tipo de comentários irônicos e de críticas.
Há que dizer que provavelmente no dia de ontem, em matéria de falta de pudor, pode-se haver marcado um recorde olímpico. O que ouvimos o representante da Chancelaria argentina dizer ontem, provavelmente será registrado como uma nova página do espírito de subordinação de uma chancelaria latino-americana aos desígnios de nosso vizinho; porque dizer que a Chancelaria argentina vai trabalhar para a liberdade do povo cubano, quando deveriam concentrar-se em trabalhar para a liberdade do povo argentino, a liberdade de seu dinheiro, que está preso no famoso "Corralito"; ouvi-los dizer que vão adotar uma posição comum com os Estados Unidos, para colaborar na defesa dos direitos humanos dos cubanos, provocaria riso, se não fosse tão dramática a situação que se está vivendo na Argentina, um país onde estão ocorrendo as violações mais flagrantes e massivas dos direitos mais elementares das pessoas.
Devo recordar aqui declarações do próprio Presidente Duhalde, que em 4 de janeiro, dois dias depois de haver assumido a presidência, expressou:
"É preciso garantir os direitos humanos básicos na Argentina" – é uma citação textual de seu discurso –, "um país no qual se fala muito de direitos humanos, tem que garantir aqueles que são básicos: o direito à saúde e à alimentação. É necessário pensar nos direitos humanos dos que não têm acesso às coisas básicas e, obviamente, garantir também a paz social, porque um passo mais abaixo nos levaria a um banho de sangue."
São palavras ditas pelo presidente Duhalde no momento em que começava e assumia uma responsabilidade tão complexa e desafiante, como a que assumiu. Isso é um reconhecimento de que na Argentina esses direitos não estão garantidos hoje. Um país em que temos visto a repressão policial, em que temos visto as pessoas morrendo de fome, de doenças, em um país com a riqueza da Argentina, dá realmente uma idéia da falta de autoridade moral para julgar a Cuba.
As declarações da Chancelaria argentina e a posição adotada ontem pela Chancelaria argentina nos deixam estupefatos; porque acreditamos que a Argentina é o país menos preparado do mundo para ocupar-se dos direitos humanos de qualquer outro que não sejam seu próprios cidadãos, que estão vivendo uma situação de agonia e de desesperança, como não se viu nesse hemisfério nos últimos 50 anos.
Vir falar dos direitos humanos em Cuba, um país que, apesar de ser um país bloqueado e um país pobre do Terceiro Mundo, tem hoje índices de bem-estar social muito superiores aos da Argentina, em um momento em que os professores argentinos, hoje de manhã, estavam em uma passeata, reclamando os salários atrasados de quatro meses, enquanto Cuba está trabalhando aceleradamente para chegar a 20 alunos por sala nas escolas primárias, é algo que chama à lucidez. Um país como Cuba, que está, neste momento, realizando uma obra social de acesso à cultura, de um aperfeiçoamento sem precedentes de seus mecanismos de atendimento social aos cidadãos, julgado por um país onde as pessoas estão assaltando os supermercados para poder alimentar aos filhos, é algo que, realmente, ultrapassa já o que podíamos considerar possível em matéria de manobras contra Cuba.
Não creio, sem dúvida, que a posição publicada ontem pelos porta-vozes da Chancelaria argentina expresse uma posição monolítica, nem que seja compartilhada por outros setores na Argentina e por outras figuras políticas; porque devemos recordar aqui, por exemplo, que o senador Eduardo Menem, uma personalidade do Partido Justicialista, que neste momento está no governo na Argentina, propôs uma resolução ao Senado argentino, que foi aprovada por unanimidade há apenas alguns dias, na qual se exortava o governo a repor, o quanto antes, o Embaixador argentino em Havana, que foi retirado no ano passado, quando ocorreu um conflito diplomático entre os dois países, ante a denúncia de Cuba da participação da Argentina em uma manobra similar, em um mês igual a este, há exatamente um ano.
O chefe do governo da província de Buenos Aires, que representa outra força política, a FREPASO, também manifestou publicamente posições de respeito a Cuba. O senador Alfonsín, ex-presidente da Argentina, em cujo governo a Argentina votou contra a condenação a Cuba em Genebra, teve publicamente uma posição de respeito a Cuba, opondo-se à participação da Argentina nesse tipo de manobras. Inclusive no governo argentino, existem personalidades que conhecemos, que têm uma posição de respeito em relação a Cuba, que não se comparam com o que vimos aqui.
Nós conhecemos, por exemplo, a senhora Hilda González de Suhalde, ministra de Desenvolvimento Social do atual governo, que visitou Cuba, a que conhecemos pessoalmente, e cujo interesse pelos temas sociais apreciamos, por desenvolver um trabalho dessa natureza em Buenos Aires, e sabemos que se interessou muito por conhecer o que ocorria em nosso país; ou a ministra de Educação, a senhora Graciela Gianettasio, que esteve em Cuba de visita e que, abemos, tem conhecimento da obra educacional de Cuba; e outros ministros e setores integrantes do gabinete, dos setores sociais e das forças políticas que pedem, hoje, realmente, uma posição diferente da Argentina. Ou seja, que estamos vendo aqui uma primeira manifestação.
Cuba tem sido um país solidário com o povo argentino. Nosso governo emitiu publicamente uma declaração contra as pressões que estavam sendo feitas contra o atual governo argentino, nos primeiros dias de seu mandato, na qual pediu solidariedade e compreensão internacional. Nosso país tem sido solidário, tem atuado, inclusive, ante a comunidade ibero-americana, para pedir solidariedade com o povo argentino, com suas autoridades, na busca de uma solução, e ontem nos deparamos, repentinamente, com uma reunião de meia hora com o secretário de Estado Powell, na qual se ia falar do tema da Argentina e em que se ia – segundo se declarou previamente – "pavimentar" o caminho, para que depois aterrissasse o Ministro de Economia argentino, e de repente surgiu que o outro grande tema tratado é o das violações de direitos humanos e da necessidade de salvar o povo cubano, o que me parece, quando menos, uma piada de mau gosto.
Randy Alonso.- O que também me parece, Chanceler, é que, se até hoje havíamos dito que esse exercício norte-americano contra Cuba na Comissão de Direitos Humanos vem se desprestigiando, pensar que possam ser portadores das posições norte-americanas nas Nações Unidas, e especialmente na Comissão de Direitos Humanos, os países desta região, que, para dizer apenas um elemento, é a região do mundo que apresenta as mais graves diferenças na distribuição da riqueza e que, além disso, tem tanto que falar de violações de direitos humanos ao longo das quatro décadas em que nossa Revolução está presente; se até hoje esse exercício foi entrando em um crescente desprestígio, creio que cairá em um desprestígio total, se certos países latino-americanos se prestam ao jogo norte-americano nessa comissão.
Felipe Pérez.- Sobre isso que você comenta, eu digo que, realmente, o jornal El País, da Espanha, publica hoje que Buenos Aires, a região argentina que até poucos dias tinha como governador o senhor Ruckauf, que agora é o Ministro de Relações Exteriores argentino, declarou-se suspensão de pagamentos, hoje, como expressão da situação social que há nesse lugar.
Vocês especulavam sobre a origem da enxaqueca que impediu o Ministro de intervir, publicamente, diante da imprensa; pergunto-me se será remorso, também, depois daquela reunião em que se tratou sobre o tema de Cuba; mas devo dizer que, quando alguém conhece a situação social que vive hoje Buenos Aires, região riquíssima da Argentina, não pode imaginar que um dos responsáveis, até há alguns dias, de que isso esteja assim, possa estar hoje de protagonista de uma aventura para salvar o povo cubano, que tem toda a força, a moral e os recursos para salvar-se por si mesmo, que não necessita de salvadores de fora, porque está fazendo uma obra a favor de seus direitos e, especialmente, a favor de sua soberania e de sua independência, que tem conquistado a admiração internacional.
Randy Alonso.- Obrigado, Chanceler.
Lázaro Barredo.- O que acontece, Randy, é que esse mundo político está "atrapalhado", essa é a verdade, porque é "democrático" atropelar gente, matar gente, investir contra as greves de professores, como ocorre em alguns países que dizem ser as Suíças da América ou da América Central, ou falam constantemente de sua atividade política, e realmente se o que vê é a maneira tão grosseira com que as forças policiais estão atuando de maneira extrajudicial, acabando com qualquer possibilidade de queixa diante de uma crise social galopante, que realmente cresce a cada dia, a cada dia engrossam as fileiras da pobreza, centenas de milhares de latino-americanos; então, isso chama poderosamente a atenção...
Randy Alonso.- No caso argentino, inclusive, dizíamos em uma mesa que, mais de 2000 pessoas, aproximadamente, entram todos os dias para as lista de pobres daquele país.
Lázaro Barredo.- Não, 8260 é a nova estatística que tenho; e hoje quase 15 milhões de pessoas estão abaixo do nível de pobreza, mais de um terço, naquele país.
Argentina é o melhor exemplo. Agora é "democrático" tudo que fizeram as forças policiais, que trouxe consigo 35 mortos, centenas de pessoas detidas, um número enorme de feridos. É "democrático" o que está acontecendo nesse país, no qual, desde o ano de 1983, dito pela Coordenadora contra a Repressão Policial e Institucional argentina, desde o ano de 1983 morrem dez pessoas por mês nas mãos das forças de segurança, em processos extrajudiciais.
Agora se está denunciando em vários meios a existência de esquadrões da morte, que existem muito disfarçados, como há também em outros países da América Latina, alguns dos quais estão nessa composição anticubana, esquadrões da morte que estão realizando operações de limpeza social, fuzilando metodicamente a adolescentes, em conflitos reais ou presumidos com o sistema político dominante. Ou dos que falam de direitos humanos e fazem como a Argentina, que tem mais de 15000 pessoas nas prisões sem submetê-las a processo judicial. Isso é humanismo?
Então a pessoa se pergunta: – Bem, com que moral se pode falar de direitos humanos, se quando se olham as estatísticas, a cada dia cresce mais a fome, cresce a miséria, cresce o desemprego, cresce o analfabetismo, as crianças têm menos possibilidade de terminar a educação primária; as pessoas, a cada dia, têm menos direito à vida? De que direitos humanos estamos falando? Inclusive, de que direito a votar, se eu não posso decidir? Que analfabeto pode decidir um voto, se não sabe em quem vai votar, se não pode ler nem o currículo do candidato que um determinado partido lhe está apresentando? Isso é democracia? Esses são direitos humanos?
Esse é o problema angustiante que hoje atinge a nosso continente, sem possibilidade de se resolver, porque o que está em crise é o sistema.
Randy Alonso.- Dimas, você queria acrescentar outros elementos?
Eduardo Dimas.- Apenas me recordava de um dado que sempre me chocou muito, que é o dado da educação na Argentina, um país que era um dos mais cultos da América Latina.
Na Argentina, 54% das crianças não termina o ensino primário e, dos que continuam, 8 de cada 10 não termina o secundário, está-se enterrando o futuro. Ou seja, é uma maneira de hipotecar o futuro, um futuro que necessita de conhecimento científicos, de desenvolvimento. Isso é o que nos querem aplicar aqui? Essa maneira para que 54% de nossas crianças não terminem a escola, por exemplo?
Randy Alonso.- Isso tem muita relação também com o tipo de defesa dos direitos humanos que fez a Chancelaria argentina em seu exercício na Comissão de Direitos Humanos.
Não sei, Juan Antonio, se temos alguns elementos sobre isso também, que seria bom explicar em nossa mesa-redonda.
Juan A. Fernández.- Sim, realmente, os dados, as notícias que dão as agências internacionais e os organismos de direitos humanos, tanto organizações não-governamentais, como as próprias Nações Unidas, são realmente escandalosas quanto ao recorde de direitos humanos que tem a Argentina.
Lázaro há pouco falava da situação de pobreza crítica no país, da negação dos direitos mais elementares, o direito à vida, à alimentação. Recordava também alguns dados que havia trazido; não poderão ser ditos todos, porque é bastante.
Quando, em algumas partes, fala-se dos "novos ricos" deste mundo neoliberal, na Argentina, a questão são os "novos pobres", cada vez há mais pobres nesse país, 14 milhões segundo suas próprias fontes oficiais. Destes, na capital, de onde vem o senhor Chanceler – foi Governador da Província de Buenos Aires –, 4,5 milhões de indigentes. Esses são os direitos humanos da Argentina.
Agora, se a pessoa recorre também à pesquisa feita pelas Nações Unidas, encontrará dados realmente arrepiantes. Por exemplo, o grupo de trabalho da Comissão de Direitos Humanos sobre os desaparecimentos forçados, que até agora tramitou apenas 3455 casos de desaparecimentos em toda a década dos oitenta, setenta, dos mais de 30000 que se referem na época sangrenta das ditaduras militares, registra ainda que, como conseqüência da impunidade, que é a palavra de ordem no país, há mais de 3377 casos sem esclarecer, e o grupo é categórico no que diz. O governo se recusa a cooperar, parou os processos para esclarecer a verdade sobre o que aconteceu ali.
Aí estão, ocupando cargos públicos, os responsáveis pelas mais atrozes violações de direitos humanos já vistas neste continente. E falando do tema dos desaparecidos, algo que não se conhecia na linguagem dos direitos humanos, essa foi uma invenção deste hemisfério e da Argentina, das ditaduras do Cone Sul, pegar a alguém e desaparecê-lo. Sabia-se que havia torturas, execuções extrajudiciais; mas desaparecer a uma pessoa foi uma instituição que se inventou neste hemisfério e lá embaixo, no Cone Sul. Bem, ainda estão impunes. Vemos as mães, as avós na Praça de Maio, pedindo justiça para seus filhos e seus netos.
Agora, Randy, se você vai ver o padrão de votos da Argentina na Comissão de Direitos Humanos, é o exemplo mais claro da dupla moral e do cinismo nessa Chancelaria, desses burocratas que se põem a fazer comentários infelizes, lá na outra capital.
Tenho aqui alguns dados que considero útil compartilhar. Por exemplo, uma resolução na Comissão de Direitos Humanos sobre as conseqüências das políticas de ajuste estrutural e da dívida externa para o pleno exercício dos direitos humanos, especialmente dos direitos econômicos, sociais e culturais. Entre outras coisas, esta resolução diz que "consciente do grave problema da carga da dívida, continua sendo um dos fatores mais importantes que influem adversamente no desenvolvimento econômico e social e no nível de vida dos habitantes de muitos países e que traz graves conseqüências de tipo social"; ou seja, explica todas as conseqüências das políticas de ajuste e da dívida. Bem, a Argentina se abstém, uma resolução majoritariamente aprovada na Comissão, 31 votos a favor, e a Argentina se abstém.
Depois, vamos ver qual é a situação econômica desse país e os problemas de dívida que tem.
Talvez nem sua gente saiba, esses que vimos na rua, o povo jogado nas ruas, talvez não saiba essas coisas, que sua Chancelaria, esses burocratas, vão a Genebra para abster-se; não, não, que não querem brigar com os organismos financeiros internacionais.
Esse é um dado interessante.
Você vira para o caso da Palestina, igual, abstenção; uma das violações mais graves que se cometem naquela parte do mundo não lhes importa. Outras resoluções, o direito a uma ordem internacional democrática e eqüitativa, uma reivindicação permanente do Terceiro Mundo, de países em desenvolvimento, abstêm-se. Vejam que curioso.
E, se fosse pouco, vemos a contagem de votação em toda uma série de resoluções contra países, que também são apresentadas ali na Comissão de Direitos Humanos, e nessas a Argentina não vota a favor, aí se abstém, mas a abstenção tem uma leitura diferente. É que esta não é uma diplomacia de princípios, esta é a diplomacia do dólar, abstém-se com aqueles aos quais vende, ou aos quais ainda pode vender carne, ou com os quais comercializa; aqui não há uma filosofia, aqui não há princípios, aqui não há uma ética na atuação da Chancelaria e de sua projeção internacional, abstém-se simplesmente.
Ah!, mas com Cuba, sim, estão preocupados. Como dizia o Ministro, realmente, se não fosse algo tão sério, é no mínimo para rir.
Creio que com isso ilustro alguns dos dados, certamente outros companheiros podem falar mais.
Randy Alonso.- Felipe, você quer dizer algo?
Felipe Pérez.- Brevemente, para dizer, Randy, que o único país da América Latina cujo suposto caso de violação de direitos humanos é levado a Genebra é Cuba; nenhum outro país da Ame´rica latina tem sua situação apresentada ali para expressar preocupação, para condenar violações dos direitos humanos.
Agora, estas são declarações do senhor Santiago Cantón, argentino, diretor executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, funcionário que na OEA cuida do tema dos direitos humanos na região.
Ele estava em Buenos Aires, em meio aos acontecimentos que vimos na televisão, as manifestações e a repressão policial. Perguntam-lhe sobre isso – publicado no jornal Clarín, da Argentina –, quais são os principais desafios que enfrenta a América Latina para o ano 2002, e diz: "Em primeiro lugar, na América Latina há tortura, há desaparecimentos forçados, assassinatos, abusos policiais" – isso é o que descreve da América Latina – "e a isso se soma o problema dos direitos sociais, econômicos e culturais, como parte integrante dos direitos humanos." Disse isso.
Agora, o relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos – vocês sabem que, a cada ano, o Departamento de Estado emite um informe em que fala dos direitos humanos, como de 170 países, menos dos Estados Unidos –, em 23 de fevereiro de 2001, publicou-se que na Argentina, no ano, haviam ocorrido entre 20 e 30 assassinatos extrajudiciais, e que nos últimos quatro anos 59 pessoas haviam sido mortas em delegacias de polícia da Argentina, em circunstâncias suspeitas. Sem dúvida, não houve nunca uma resolução contra a Argentina em Genebra, não houve resolução contra a Argentina para castigar violações como as que vimos nestes dias, ou para pedir que cesse a impunidade e que se esclareça a situação, como pedem as Mães da Praça de Maio.
Alguém viu preocupação em condenar os direitos humanos em um continente onde morre uma vintena de jornalistas, por ano, assassinados por denunciar casos de corrupção e outras violações de direitos humanos?
Agora, alguém pode dizer que algum dos torturados, cujos casos foram documentados ante a Comissão de Direitos Humanos em Genebra, é cubano? Não há um só, nunca se pôde apresentar, porque não há um torturado em Cuba.
Pôde-se apresentar um assassinato em Cuba cujo cadáver não apareceu? Não há um assassinato extrajudicial em Cuba.
Pôde-se apresentar o caso de uma mãe que reclama que vieram buscar seu filho de madrugada, levaram-no em uma camioneta sem chapa e não mais apareceu? Não há em Cuba um caso, não se pôde apresentar.
Puderam apresentar evidências de esquadrões da morte assassinando crianças nas ruas para fazer limpeza, em Cuba? Não há.
Da Argentina, diz-se que em Buenos Aires foram mortas 70 crianças em um ano, e que os policiais estão impunes, e que o governador de então, hoje Ministro de Relações :Exteriores, defendeu a atuação dos policiais. O caso da Argentina não foi levado a Genebra.
A América Latina é um continente onde a metade da população está vivendo abaixo dos níveis de pobreza, onde os índices de mortalidade infantil, em muitos países, superam em doze, quinze ou vinte vezes a de Cuba. Então, Cuba é o país que levam a Genebra para ser condenado e pelo qual se expressa preocupação em Washington, um país que baixou a 6 por 1000 a mortalidade infantil. Se a América Latina houvesse baixado seus níveis de mortalidade infantil aos de Cuba, quantos milhões de crianças estariam hoje vivos na América Latina?
Então, há todo um padrão de dupla moral, há toda uma manipulação do tema contra Cuba, que é ao que nós realizamos nossa oposição e nossa denúncia.
Randy Alonso.- Muito obrigado, Chanceler.
Enquanto ontem o Chanceler argentino expressava sua "preocupação" pelos direitos humanos em nosso país, desempregados, organizações sindicais e trabalhadores estatais, segundo cabo da DPA, protagonizaram diversas passeatas e interrupções de estradas nas províncias de Santa Fé, Chaco, Misiones, Rio Negro, Santiago del Estero, Salta, Jujuy, La Rioja, San Juan e a Grande Buenos Aires.
As reivindicações centraram-se, em quase todos os casos, no pedido de postos de trabalho, subsídios para desempregados, salários atrasados e assistência alimentar, segundo informaram agências de notícias locais.
A situação na Argentina, nestes dias, esteve refletida pelos grandes meios de comunicação do mundo, e estas são imagens transmitidas pela Televisão Espanhola, dos acontecimentos dos dias 21, 22 e 25 de janeiro deste ano.
Jornalista.- O presidente argentino Eduardo Duhalde não cumpriu sua primeira promessa. Terá de converter em pesos todos os depósitos, o que suporá uma perda do valor do dinheiro que há nos bancos.
A conversão dos depósitos a peso responde a um pedido do setor financeiro; mas o governo está também pressionado pelo Fundo Monetário Internacional, que lhe pede uma flutuação da moeda e um controle do orçamento. Este organismo comprometeu-se a conceder uma ajuda, em troca de um plano sustentável. O FMI exige um orçamento austero de gastos para este ano. Buenos Aires terá de definir um programa econômico para apresentá-lo ao Fundo Monetário no final deste mês.
Enquanto isso, a situação econômica pressiona os cidadãos a fugir do país.
Miriam Viega.- Começar a vender o que te custou tanto para ter; mas, por outro lado, você pergunta, mais que vendê-lo, tenho que dá-lo, e, por mais que o dê, como faço para buscar esse dinheiro?
Jornalista.- À crise do sistema financeiro, é preciso somar o aumento de preços. Na primeira quinzena de janeiro, a inflação subiu quase 2%, a situação é, para muitos, a pior dos últimos anos.
Ricardo Viega.- Porque meu pai veio designado para cá e foi progredindo, e eu cresci um pouco por aí, mas baixei mais que cresci.
Jornalista.- Nas últimas horas, a Argentina viveu uma calma tensa e o número de manifestações diminuiu, embora continuem convocadas várias concentrações em todo o país.
A terceira semana de Eduardo Duhalde à frente do governo argentino iniciou-se com violentos distúrbios em vários pontos do país, e o descontentamento da população não diminui, apesar das primeiras medidas econômicas postas em marcha pelo executivo.
Os incidentes mais graves ocorreram em Resistência, ao norte do país, onde grupos de desempregados enfrentaram a polícia, que usou balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo para reprimi-los.
Em Córdoba, a polícia teve de agir para separar um grupo de taxistas que se enfrentavam entre si, pelas diferenças de tarifas.
As manifestações contra os bancos se repetiram na capital, onde centenas de pessoas exigiram a abertura completa do Corralito, que impede os argentinos de ter mais de 1000 dólares por mês em efetivo. Eles se opõem também a que as dívidas com os bancos sejam convertidas em pesos.
Por outro lado, as principais centrais sindicais estão preparando, para domingo, uma passeata conjunta até a Praça de Maio, de Buenos Aires.
O Governo argentino decidiu flexibilizar, somente em casos extremos, o Corralito bancário. Esta medida beneficiará a anciãos maiores de 75 anos e enfermos.
Ontem, milhares de pessoas voltaram a tocar suas panelas em Buenos Aires, para exigir a renúncia dos membros da Corte Suprema de Justiça. Os magistrados são acusados de tolerar a corrupção por parte da classe política e do poder financeiro.
Outras manifestações se concentraram diante das agências bancárias, inclusive em seu interior. Esta família, por exemplo, decidiu passar suas férias em uma delas.
Cidadão.- Este banco não me permite ir a nenhum lugar de férias. Este é o lugar aonde vou de férias.
Jornalista.- Com os panelaços, os argentinos denunciam o atraso de salários aos funcionários, a paralisação dos serviços sociais e as restrições bancárias.
Cidadão.- Entre os bancos, os políticos e os governos, desde 1983 até agora nos roubaram.
Cidadão.- Como é possível que haja tanta riqueza no país, e aqui tenhamos tanta fome?
Jornalista.- Aos protestos mais ou menos espontâneos, segue-se a criação de redes de resistência, com vocação para converter-se em alternativa aos partidos e sindicatos tradicionais, Internet tem sido o instrumento preferido para sua coordenação, e através dela foi convocado o panelaço desta tarde.
Randy Alonso.- Bem, de que deveriam ocupar-se a Chancelaria e o Chanceler argentino? Dessas imagens que vimos e da crise econômica e social, que eu pediria ao companheiro Francisco Soberón, presidente de nosso Banco Central de Cuba, que nos esclarecesse sobre a situação tão triste que está vivendo o povo argentino no dia de hoje.
Francisco Soberón.- Realmente, a primeira coisa que teríamos que dizer é que esta quebra do modelo neoliberal na Argentina não é apenas isso, não é somente uma visível e inocultável quebra desse modelo tão defendido pelos países ricos, pelo Fundo Monetário Internacional; pode-se classificar também como o maior desfalque do século, o maior saqueio.
Felipe falava de medalhas de ouro. Bem, se houvesse uma olimpíada de desfalques, neste século haveria muitas possibilidades de que isso que aconteceu na Argentina fosse medalha de ouro. Claro, agora apareceu um concorrente, com o caso de Enron, nos Estados Unidos; mas estou seguro de que seria uma final muito disputada.
Agora, meditando também muito sobre isto, dizia: Bom, não é somente um grande desfalque, creio que é também quase um ato de magia. Eu sempre vi os magos fazerem desaparecer pombas, lebres; mas nunca tinha visto um capaz de fazer desaparecer 85 bilhões de dólares, de uma ou de outra forma. Sem dúvida, também poderiam competir pelo mais fabuloso ato de magia.
Por outro lado, víamos um argentino, com muita razão, dizendo: "Como podemos estar nesta situação, com um país tão rico como o que temos?" Eu também queria dar alguns dados breves de quão rica é a Argentina. Que país é esse, que o Fundo Monetário e os fundamentalistas de mercado pulverizaram? Um país que tem 2.766.000 quilômetros quadrados, oitavo do mundo, em extensão territorial,– para que nosso povo tenha uma idéia – vinte e cinco vezes o tamanho de nosso país, e uma população de 37 milhões de habitantes, aproximadamente 3,3 vezes a população de Cuba. Ou seja, que o que corresponde a cada cidadão, em termos de riquezas, é extraordinário.
A Argentina produz, entre cereais e oleaginosas como a soja, com um alto valor protéico, 66 milhões de toneladas. Fazendo uma conta rápida, esse povo que diz: "Tenho fome", produz alimento suficiente, desses cereais e soja, para dar 10,7 libras diárias a cada argentino – repito, mais de 10 libras diárias. Tem 48 milhões de cabeças de gado vacum, 1,3 por cada habitante.
Tem 5.000 quilômetros de costas, ricas em distintas espécies de peixes, captura 850.000 toneladas de peixes; recursos fluviais de todo tipo, grande economia em termos de meios de transporte, porque tem rios navegáveis; petróleo: está produzindo 75 milhões de toneladas anuais. Mas não apenas isso; tem reservas comprovadas de aproximadamente 1,4 bilhões de petróleo equivalente. O que isso quer dizer? Bem, 186 anos de consumo para Cuba, para que se entenda o volume de reservas de que estamos falando; além disso, tem a grande vantagem, por esses rios de que falávamos, de que 40% da energia que produzem, seja por hidrelétricas, nem sequer têm de utilizar esses recursos em hidrocarbonetos; têm, além disso, grandes possibilidades de produzir eletricidade através das hidrelétricas.
Agora, em que eles converteram todas essas riquezas, vamos chamá-los os alquimistas – é quase um exercício de alquimia – do Fundo Monetário Internacional, com seus subordinados dos governos anteriores da Argentina?
Creio que nada pode expressar com mais eloqüência essa situação, que uns breves parágrafos do discurso inaugural do presidente Duhalde, ao tomar posse de seu cargo.
Cito textualmente, diz o presidente Duhalde:
"Como conseqüência da depressão econômica, a queda de nossas receitas por habitante chegou a 12%. Também aumentou a desocupação, superando todos os registros históricos do país", que as estatísticas são muito incompletas, oficialmente dizem 18%, mas se fala de mais de 30% de desemprego, sem contar o subemprego, os empregos informais, etc., "e o índice de pobreza chegou a 40% da população; isso significa" – diz Duhalde – "nem mais nem menos de 15 milhões de nossos irmãos que vivem abaixo da linha de pobreza", e eu acrescento, nesse riquíssimo país.
"Durante o exercício 2001, as reservas do Banco Central da República Argentina caíram 18 bilhões de dólares, e 24% dos depósitos do sistema financeiro fugiram, como conseqüência, entre outras coisas, da crise de confiança."
"Não é momento" – continuava Duhalde – "de atribuir culpas, é momento de dizer a verdade. A Argentina está quebrada. A Argentina está arruinada. Este modelo, em sua agonia, arrasou com tudo. A própria essência deste modelo perverso acabou com a conversibilidade, atirou à indigência dois milhões de compatriotas, destruiu a classe média argentina, quebrou nossas indústrias, pulverizou o trabalho dos argentinos. Hoje a produção e o comércio estão, como vocês sabem, parados; a cadeia de pagamentos está rota, e não há circulante que seja capaz de pôr em marcha a economia". Fim da citação.
E eu, lendo isto, pensava também que, além de todas essas riquezas das quais falávamos, a Argentina tem inclusive uma riqueza ainda maior, que é seu povo inteligente, trabalhador, capaz, tão querido pelos cubanos e que tanta solidariedade nos deu, e nós a ele.
Agora, seria um pouco longo explicar como foi que afundaram a Argentina, ou seja, uma tarefa dessa magnitude não pode ser explicada em alguns minutos. Mas sim, somente para dar uma idéia, nós mencionaríamos cinco aspectos, e todos têm que ver com o fundamentalismo imposto pelo Fundo Monetário Internacional, e com a mesma genuflexão, que se mencionou aqui do ponto de vista político, e que do ponto de vista econômico também se exercita, parece que se treina da mesma maneira.
90% do sistema bancário privatizado, telecomunicações, petróleo, essas 1,6 bilhões de toneladas de reserva, isso não é mais dos argentinos, privatizou-se, vendeu-se; linha aérea, eletricidade. No caso, inclusive, da venda da empresa de petróleo diz-se, comentam-se muitas coisas, de pessoas próximas, que até foi feito um exercício, por quem tinha de avaliar a companhia, de não declarar 30% de suas reservas, para que a venda pudesse ser mais barata. Será verdade, não será verdade, comenta-se com muita força, e realmente não estranharíamos nada, precisamente vendo o que aconteceu nesse país.
Além disso, é claro que todas essas privatizações têm como base aceitar de pés juntos que o Estado é sempre um péssimo administrador. Uma verdade axiomática que não sei em que lugar se estabeleceu, onde foi essa discussão, qual foi o juiz que determinou que o Estado é sempre mal administrador, e o mercado, bom administrador; se o mercado é tão bom administrador, por que Enron fracassou, quebrou e arrastou às perdas milhares de cidadãos norte-americanos que tinham suas fortunas aplicadas ali? Conheço muitos casos de empresas estatais que funcionam eficientemente, poderia mencionar muitíssimos países, Cingapura é sempre um exemplo; e conheço privatizações que foram um desastre e que posteriormente a empresa privatizada foi mais ineficiente. Não quero mencionar casos, mas poderia citar muitos.
O que todas essas privatizações trazem como conseqüências? Bom, imediatamente, o festim, o butim, vêm as entradas pela venda desses ativos. Mas o que aconteceu depois, nos dez anos que sucederam? Muito simples, saíram para o exterior, pela conta de renda, entre juros e utilidades, nada mais, nada menos que 60,253 bilhões de dólares.
Neste caso, tomei nota de algo interessante. Em abril de 2000, aprovou-se no Senado uma emenda à lei trabalhista, para dar maiores liberdades às empresas para desfazer-se da força de trabalho. Isso trouxe como conseqüência, e é também outra lição, um áspero confronto com os sindicatos, e criou-se uma situação de instabilidade para o país. Mas o mais interessante é que, em setembro de 2000, vários senadores foram acusados de haver recebido suborno para aprovar essa emenda. A pessoa às vezes se pergunta se há, por trás disso, verdadeiramente, uma convicção de que o que se está fazendo é o que se deve fazer, ou se há uma conveniência pessoal, um enriquecimento dos que atuam assim, que adotando políticas que protegessem mais a seus povos, então não teriam acesso a todas essas fontes de malversação, de suborno.
Agora, para solucionar esses déficits, falamos de um déficit comercial de 23 bilhões, um déficit na balança de rendas de mais de 60 bilhões. Déficits extraordinários, como solucioná-los? Inicialmente, utilizou-se o dinheiro que resta das privatizações, digo o que resta porque todos sabemos que uma boa parte desses fundos saíram para não se sabe onde. É parte do ato de magia de perder o dinheiro. A única solução é endividar-se e, para não ir até mais atrás, de 1990 para cá a dívida na Argentina cresceu de 62 a 145 bilhões – tenho muitas dúvidas sobre essa estatística dos 145 bilhões –, aí não está incluída a dívida que as províncias podem ter contraído diretamente, há muita dúvida sobre que outro tipo de dívida pode não estar incluída aí, mas a estatística que está disponível fala de 145 bilhões, 2,3 vezes em 10 anos, multiplicou-se por 2,3.
No mesmo período, pagaram 180 bilhões, ou seja, pagaram três vezes a dívida que tinham no ano de 1990, e agora devem o dobro do que deviam em 1990.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento calculava que, nesse ritmo, a dívida chegaria, no ano 2003, a 167 bilhões. Essa política de constante endividamento, que conseqüências trazia também? A cada dia tornava a Argentina mais dependente dos mercados financeiros e das dádivas, às vezes suculentas, é claro, do Fundo Monetário Internacional; portanto havia que seguir, sem muita discussão, as políticas que ditassem.
Entre as coisas que se exigiam, estava: corte dos gastos públicos – já sabemos o que é corte dos gastos públicos, porque não é corte dos salários das altas esferas do governo, não é corte dos meios de que dispõem; não, estamos falando de saúde, de educação, estamos falando das aposentados. E o governo, seguindo esse jogo, segue o que eu chamei uma política suicida, de tentar, em uma economia em recessão, chegar a um orçamento com déficit zero. Todos sabemos que o déficit orçamentário, em um momento determinado, pode contribuir para promover, para expandir a economia. Um déficit zero é uma política recessiva; inclusive os Estados Unidos, nesta etapa de recessão, vocês viram como eles estão tratando de estimular o gasto por muitas vias. Isso trazia também, como conseqüências, o que se fala aqui, trabalhadores sem salários, trabalhadores que há três meses não recebem seus salários. Eu imagino que nossa população escuta isso, e estranha, se horroriza, como é isso que chegue o dia que te corresponde receber teu salário, e te digam: "Não, senhor, o senhor não pode cobrar hoje." "Mas por quê?" "Não, é que, veja, não chegou o dinheiro." "Mas o que é isso, se eu trabalhei?"
Essas coisas acontecem e, é claro, isso não é violação dos direitos humanos; isso é "ajuste", que é preciso fazer para que a economia funcione, e isso não tem nenhuma implicação.
Toda essa política aprofundou a crise social e criou também grandes conflitos entre o governo central e os governos provinciais, poderosos governadores, como esse que estávamos vendo agorinha, que é o ex-governador de Buenos Aires, que entraram em uma política de confronto com o governo central, criando também um nível de desconfiança, de falta de credibilidade política, nesses mercados de que eles necessitavam, o que os levou a encarecer extraordinariamente o endividamento que eles necessitavam incrementar. Eles necessitavam incrementar constantemente sua dívida externa, pegar mais dinheiro para pagar o que deviam e poder manter o país funcionando. O chamado risco-país chegou a 40%. Era evidente que o país ia quebrar, que essa situação era impossível de manter.
Uma das coisas que recordo muito, é que o Comandante-em-Chefe, há muitos meses, já nos havia dito: a Argentina quebra; depois ele o disse publicamente, mas muito antes de mencioná-lo publicamente, já havia dito em particular.
Inclusive no Foro de São Paulo, em 7 de dezembro de 2001, doze dias antes da quebra, disse textualmente: "Não precisa nem soprar; isso se desmorona, isso não tem remédio, ainda que se reúnam, de um partido e de outro, por aqui e por ali. Esse é o quadro, é insustentável, e ninguém vai vir salvar sua economia, a esta hora, aqueles que são neoliberais estritos cem por cento, neoliberais quimicamente puros. Os do Banco, os da Reserva dos Estados Unidos, não têm mais o mínimo respeito ou apreço por aquele Estado. Eu lhes dizia que por isso não podem sustentar-se."
Eu dizia, como é possível que o Comandante-em-Chefe, a milhares de quilômetros de distância, com a informação que recebe, tenha conseguido ter essa claríssima percepção, praticamente só lhe faltou dizer o dia que quebrava, e os que estão ali não fazem nada para parar essa situação, que ele via? É como alguém que vai a um desfiladeiro e cegamente continua, continua, porque há outro atrás que lhe diz: "Continua, que aí não há abismo." E continua loucamente, sem olhar nada. E ao final aconteceu o que o Comandante havia previsto.
Quando se começa a ver claramente que o país vai quebrar, deixa de fluir o capital externo; internamente, os que tinham o dinheiro no país, que estavam bem informados, não são esses pobres que vimos aí, essa senhora que dizia: "Roubaram meu dinheiro." O que estava bem informado, simplesmente pôs seu dinheiro bem guardado no exterior. Esse não sofreu as conseqüências.
Randy Alonso.- Há uma investigação que começou, Soberón, ao presidente do Banco Central, porque dizem que há 120 pessoas...
Francisco Soberón.- Isso, vamos ver daqui a pouco.
Agora, neste momento, eu te diria que já chegou a situação do grito "ao ataque". Salve-se quem puder. Aí a racionalidade desapareceu e, num momento como esse, já havia muitas vozes que diziam ao governo: "Deve-se reestruturar a dívida, deve-se dizer que não se pode enfrentá-la." Inclusive havia os que diziam: "Declare-se uma moratória temporária." Simplesmente, teimou-se até o último momento em não declarar essa moratória, mas a custa de quê?, porque não foi à custa dos salários dos que tomavam essas decisões e de suas fortunas pessoais, foi à custa de dizer, em determinado momento: "Como não tenho mais dinheiro..." Porque todos os poupadores externos, todos os investidores externos levaram o dinheiro. Que dinheiro me resta nos bancos? Ah! resta o dinheiro da população, das pequenas empresas, dos que, por uma ou outra razão, não sacaram seu dinheiro do país. Decisão do governo: eu pago o Fundo Monetário e tiro o dinheiro do meu povo. Graficamente, para mim é como pegar e tirar o dinheiro do bolso de cada argentino, ou o dinheiro que tinham no banco e, simplesmente, entregá-lo ao Fundo Monetário, para que digam que você é bom, que você cumpre; o que, no final, não conseguiram nem assim.
Já estamos no momento em que se produz então o que é chamado de "Corralito". O dia em que foi feito o "Corralito", eu disse: Pra mim, mais que um "Corralito", que é uma coisa pitoresca, eu digo que meteram o dinheiro do povo argentino dentro de um fosso de crocodilos. Isso não é um "Corralito", isso é uma prisão com um fosso de crocodilos em volta, porque, para chegar a esse dinheiro, realmente, vão ter de receber muitos golpes da polícia, desgraçadamente para eles, um povo tão nobre, tão trabalhador, a quem queremos e admiramos tanto.
Foram congelados cerca de 65 bilhões, mas, como havia paridade do dólar com o peso argentino, 45 bilhões eram de depósitos feitos em dólares, e 20 bilhões em pesos.
Uma coisa que talvez não estejamos compreendendo bem, é que não se trata somente das economias da população. Não, é mais grave; porque, na Argentina, uma alta percentagem dos salários é paga através de contas bancárias, de maneira que a empresa deposita o salário em uma conta bancária, e essa restrição quer dizer que você não pode sacar nem seu salário corrente. Você pode necessitar para pagar a eletricidade, a casa, o gás, é um dinheiro que você ganhou, mas, se está acima do limite estabelecido, você não pode sacar, acumúla-o aí. E fala-se que vão pôr, obrigatoriamente, em depósito a prazo fixo, e que a partir de Janeiro de 2003 é que se começará a devolver.
Eu queria ter dado uma explicação mais detalhada, mas é tão confuso tudo que se disse e tudo que se está fazendo, e tantas mudanças constantes, que se produz uma tremenda frustração, não somente no povo, o nível de estresse, de problemas psíquicos dos trabalhadores bancários é altíssimo. Há informação sobre isso, de insônia, de que têm de tomar ansiolíticos, uma coisa terrível, porque a cara visível do banco é essa pessoa que está aí no guichê e que, às vezes, nem sabe, nem pode dizer ao que chega o que pode e o que não pode fazer. Posso tirar dinheiro? Não posso tirá-lo?
Uma coisa está clara: não pode sacar acima de certos limites, e, segundo: ninguém vai sacar dólares. Parece-me que isso, sim, está claríssimo. As promessas que foram feitas, de que se podiam sacar os depósitos na moeda original, que quem tinha depósitos em dólares sacaria dólares, isso foi levado pelo vento, simplesmente vai ser em pesos. Um peso que se desvalorizou a uma taxa de 1,40, mas para transações oficiais, que é a que devolveriam uma parte, talvez, do dinheiro, de acordo com os limites estabelecidos; mas essa pessoa, se quer comprar dólares, tem de comprá-los no mercado livre, e aí chegou-se a cotar a 2,15 o dólar, agora está a 1,85, o Banco Central interveio para evitar uma desvalorização maior.
Em mesas anteriores, falamos dos limites dos depósitos, e eu sempre gosto de recordar que, para cobrir seus gastos, um argentino necessita, por exemplo, para sua conta mensal de eletricidade, de 70 dólares, aproximadamente, para uma família de quatro pessoas; serviço de gás, 35 dólares mensais; água, 30 dólares mensais; a casa, dependendo do bairro – como em todos os lugares –, pode ser mais ou menos barata, entre 300 e 1000 dólares. Eu sei que esses números, para nós, podem parecer algo irreal, exorbitante, porque em Cuba está-se acostumado a uma conta de eletricidade de 13 pesos, em média, que seriam 50 centavos de dólar ao ano. E aqui aproveito para dizer que a imprensa estrangeira, freqüentemente, para estabelecer comparações, diz quanto ganha um cubano em dólares, dividindo seu salário pela taxa de câmbio da CADECA; mas jamais diz, utilizando o mesmo método, que um cubano paga 50 centavos de dólar de eletricidade, ou um dólar de aluguel, ou que pode comprar, praticamente, alimentos básicos para quatro pessoas, por um mês, a preços subsidiados, por cerca de dois dólares.
Agora, nesse período aconteceram as coisas mais incríveis e, como se disse aqui, se o tema não fosse tão dramático, realmente há alguns casos pitorescos, como esse que vimos, da família que foi passar suas férias no banco.
Randy Alonso.- Em um banco.
Francisco Soberón.- Sim, é uma coisa incrível.
Observem também o que dizia o próprio Duhalde, com relação a esses fenômenos ocorridos nesse período.
Dizia Duhalde: "Existe a denúncia, feita neste Congresso, acerca da provável ilegalidade da remessa de parte desses fundos, com manobras, ao exterior." Quando diz "parte desses fundos", ele estava se referindo aos 65 bilhões de dólares que foram colhidos no fosso de crocodilos.
Randy Alonso.- Sessenta e cinco bilhões de dólares.
Francisco Soberón.- Sim, 65 bilhões de dólares que foram colhidos nesse fosso.
E ele dizia: "É preciso investigar seriamente essas suspeitas, porque deve-se garantir que os que roubaram o dinheiro" – dito pelo presidente Duhalde – "das pessoas, e os que não encontraram os que roubavam, sejam presos."
Vejamos rapidamente alguns casos dramáticos. Aqui temos um senhor, boníssimo, nobre, que os vizinhos admiram e estimam, que chegou com uma granada ao banco, um insulino-dependente, um diabético que necessita de insulina; há que dizer que o tratamento de um mês com insulina requer cerca de 45 dólares, para ser comprada na Argentina, essa mesma insulina que nós vendemos aqui a 1,25 pesos, igual, ou seja, o mesmo tipo de insulina, a mesma dose, etc., que aqui se vende a quatro centavos de dólares, lá custa cerca de 45 dólares.
Então, o homem chegou com uma granada e disse: "Ou me dão o meu dinheiro, ou voamos todos." E, é claro, diante de uma forma tão persuasiva, deram-lhe o dinheiro (risos). Depois o prenderam. Diz: "Embora a polícia tenha tentado recuperar o dinheiro que Norberto havia recuperado, não pôde encontrar as notas, agora só ele sabe onde estão", e, é claro, em um banco seguro não estão (risos). Dizem aqui os vizinhos: "Todos no bairro têm um excelente conceito dele, ‘vizinho dos melhores, boníssimo, muito solidário’, cansaram-se de repetir ontem, os vizinhos, ao serem consultados por este diário, ‘o que fez, fez por estar exaltado e indignado’." Diz o jornal que Norberto é insulino-dependente, seu quadro é severo, tem que injetar-se a substância duas vezes por dia e teve, em várias oportunidades, comas diabéticos.
Agora, o toque quase de simpatia que se pode ver aqui é que o pobre Norberto está acusado de "extorsão", por haver chegado com a granada para que lhe dessem seu dinheiro, o homem agora tem de enfrentar acusações de "extorsão".
Dizia, então, o jornalista que receberam muitas chamadas, diz: "De cada dez chamadas, nove e meia se solidarizaram com ele e o apoiavam", contou um jornalista da Rádio Tandil, um inclusive advertiu – um que chamou –, que se o homem ficava preso, organizariam uma manifestação. Imagino que um panelaço ou algo assim.
Chegaram também cabos sobre o tema das reservas do Banco Central. ~~~~as reservas argentinas chegaram a ser de 24 bilhões de dólares, e este é um cabo do Clarín, de 27 de Dezembro, quinta-feira. Diz: "Embora os números do Central" – quer dizer do Banco Central – "assegurem que as reservas líquidas, que incluem ouro e divisas, chegam a 14,3 bilhões" – ou seja, já seriam aproximadamente 10 bilhões menos que o que chegaram a ter –, "as versões que circulam no sistema financeiro dizem outra coisa.
"Segundo esses rumores, ao abrir o cofre, encontraram-se uns 3,5 bilhões em efetivo e o resto em papelitos, sustentou um banqueiro, em referência à surpresa sofrida pelo secretário da Fazenda, Rodolfo Frijeri, na segunda-feira."
Realmente, depois tratei de revisar bem, tem havido muitas informações contraditórias, e é possível que esse número seja inexato. Pode ser um pouco mais, um pouco menos, mas não deixa de explicar a situação, vamos dizer, de absoluta incerteza que existe com uma coisa tão séria como são as reservas do Banco Central.
Aqui outro cabo: "Asseguram que o governo de De la Rúa sabia da queda das reservas do Banco Central", referindo-se a isso. "O diretor do Banco Hipotecário, Julio Macchi, sustentou hoje que o governo de Fernando de la Rúa sabia que as reservas do Banco Central estavam em queda, e afirmou que mentiram às pessoas ao não lhes dar conhecimento da verdadeira situação das finanças argentinas.
"Como é que tínhamos as reservas suficientes para agüentar o um por um, e na manhã seguinte voaram e foi necessário desvalorizar? perguntou-se Macchi, que destacou que um dos maiores erros é que os governantes tinham conhecimento disso e mentiram à população."
"O ex-presidente da Bolsa de Comércio portenha estimou que os funcionários deveriam ter conhecimento de como estava a situação, mas a falseavam e confundiam." Outro cabo diz, "a justiça argentina aprofunda investigação sobre fuga de depósitos."
"Uma parte desse dinheiro, do dinheiro que está agora em depósitos, que não são devolvidos ao povo, segundo disse a fonte, ‘havia saído do país mediante manobras marginais, que escaparam aos controles oficiais. Investigamos se os bancos fizeram auto-empréstimos e empréstimos a empresas que não podiam pagá-los ou a empresas fantasmas, e se utilizaram bancos off-shore’ – ou seja, bancos localizados fora do território, em paraísos fiscais com muito pouco controle –, ‘para sacar dinheiro do país, provocando um esvaziamento dos bancos, e se parte do dinheiro transferido era dos poupadores’. Até o presidente Duhalde disse que há indícios de que muito dinheiro se foi ilegalmente do país."
Mas agora, há algo aqui que surpreendeu inclusive a nós, pelo pouco comum de uma denúncia desse tipo.
"O deputado Franco Caviglia, do também governante Peronismo, afirmou neste domingo, em entrevista à Rádio América, que ‘vamos começar a fazer as investigações preliminares com a polícia aduaneira. O legislador insistiu em um pedido de informações ao Poder Executivo, para que o Banco Central e a Aduana revelem se as entidades bancárias remeteram divisas ao exterior pouco antes do congelamento bancário." Lendo este cabo, eu ainda pensava que estavam falando de transferências eletrônicas, como é o normal, de depósitos que se remetem ao exterior por via bancária. Não, senhor.
Continua o cabo: "Caviglia lembrou que, entre os dias 20 e 30 de novembro, uns 358 caminhões pertencentes às empresas transportadores de valores" – ou seja, empresas como a SEPSA – "Juncadella, Brick e Vigencia, foram até o aeroporto argentino, por onde saiu do país uma importante soma de dinheiro. Não quero eu somar-me a essa acusação. É preciso ver, esta é uma investigação; mas isso dá idéia de uma operação do tipo Bonny and Clyde. Isso já não é uma coisa sofisticada. E mais, Bonny and Clyde empalideceriam de inveja, é o sonho de um ladrão de banco, levar 358 caminhões, se é verdade.
Este outro cabo fala de intervenções, porque a justiça está atuando. Diz: "A polícia confirmou que as operações se realizam a pedido do juiz federal de turno" – ou seja, há intervenção nos bancos – "Norberto Oyarbide, em razão da denúncia apresentada" – outra denúncia – "pelo advogado radical Juan Carlos Iglesias.
"Iglesias pediu que se investigue a presumida fuga de cerca de 20 bilhões de dólares, desde 1º de Novembro passado até que foi imposto o chamado "Corralito".
"A denúncia investigada por Oyarbide foi apresentada pelos advogados Isaac Damsky e Augusto Veronelly, os quais acusaram de fraude ao ex-presidente Fernando de la Rúa, ao ex-ministro de Economia Domingo Cavallo e ao renunciante titular do Banco Central Roque Maccarone", ou seja, que não apenas há esse tipo de intervenção nos bancos, há também ações contra o ex-presidente e o ex-ministro de Economia, o ex-titular do Banco Central.
Outro cabo diz: "Os depósitos de maior montante já foram do país", não sei quanto. Bem, havia dados que diziam que apenas alguns dias antes de impor o "Corralito", que parece que foi um segredo um pouco conhecido por algumas pessoas que tinham bastante dinheiro no banco, retiraram-se 5 bilhões de dólares.
Evidentemente, quando vemos coisas como estas, não podemos deixar de analisar que nós, em Cuba, onde supostamente há todas essas violações dos direitos humanos, temos um orçamento em assistência social de 2,3 bilhões de pesos, e que nos mais terríveis momentos do período especial, nunca um aposentado nosso foi a um banco, e sua modesta pensão, a que temos recursos para pagar, deixou de ser paga. Creio que a nenhum dirigente deste país jamais ocorreu usar nossos aposentados como moeda de troca, utilizar a população que tanta confiança tem aqui no sistema bancário, com cerca de 5 milhões de contas.
Randy Alonso.- Muito pelo contrário, Soberón, neste momento, o que a Revolução faz são programas também para um melhor atendimento a esses aposentados.
Francisco Soberón.- Exatamente, todos os programas sociais, que seria interminável expô-los aqui, precisamente privilegiamos esse tipo de gastos, o que disse Felipe dos computadores nas escolas, os programas que o Comandante está realizando com tanta força, os trabalhadores sociais, para que cada cubano que o necessite tenha um trabalhador social para atendê-lo, e Cuba, infelizmente, não tem essas riquezas que tem a Argentina, em termos de riquezas materiais; sim, é claro que temos um povo, que – como já foi dito – é nosso maior capital, mas temos também um bloqueio; mais exatamente, uma guerra econômica que tenta sufocar-nos há 40 anos, e essas são as circunstâncias em que temos garantido que nossos aposentados cobrem suas pensões, e nesta mesma tribuna o Comandante, há apenas dois meses, ratificou a nosso povo que seus depósitos sempre serão respeitados, como a Revolução tem feito sempre, e isso, simplesmente, Randy, tem como conseqüência um incremento dos depósitos nos bancos, ou seja, confiança plena da população, credibilidade absoluta nos seus dirigentes e principalmente no Comandante.
Agora, gostaria de terminar com uma menção a um artigo, creio que foi inclusive um artigo editorial que apareceu no Wall Street Journal. Como se sabe, o Wall Street Journal, eu creio que poderíamos dizer que é o principal porta-voz dos interesses financeiros e comerciais dos Estados Unidos. Vamos dizer, um porta-voz autorizado do stablishment, que reflete opiniões dos que, de uma ou de outra forma, governam e mandam realmente naquele país.
O título não podia ser mais ofensivo: "Argentina a caminho de converter-se em república das bananas". Ofensivo e também um pouco contraditório, porque busquei no dicionário república das bananas, tive essa curiosidade, e um dicionário norte-americano a define: "País da América Latina que está sob a excessiva influência econômica dos Estados Unidos". Assim é como define um dicionário norte-americano o que é uma república das bananas, eles próprios. Por favor, que ninguém se ofenda, são os norte-americanos os que fazem essa definição, eu me limito a divulgá-la.
Realmente é um artigo que não poderia ser mais ofensivo, eu te diria que reflete um desprezo irritante para qualquer um. Comparam o que está acontecendo na Argentina com o roteiro de um filme, de uma comédia de Woody Allen. Dizem: "É como se os roteiristas desse filme estivesses projetando agora a política econômica da Argentina, porque as novas reformas daquele país são certamente loucas. As políticas são tão más que talvez, inclusive, o Fundo Monetário Internacional terá cuidado em entregar mais fundos em uma ação de socorro." Com o próprio presidente Duhalde, este artigo é muito desrespeitoso. Realmente nós nos sentimos, como latino-americanos, ofendidos com esse artigo.
E como termina esse artigo? Diz: "Apesar de tudo isso, Argentina continua pedindo" – quando diz "apesar de tudo isso", é tudo o que diz de todos os erros que supostamente cometem, de que a política não serve, de que é uma loucura – "entre 15 e 20 bilhões de fundos novos ao FMI, e o FMI e o Tesouro da administração Bush continuam dizendo que falarão somente se a Argentina apresenta um plano correto. Mas um país que se comporta como o faz a Argentina, não merece nem a esperança de ajuda internacional; merece ser desterrado dos mercados de capital de todo tipo, privados e oficiais. Se a Argentina deseja seguir o caminho do Haiti, isso é seu problema, ainda que seja uma tragédia para seu povo" – evidentemente, o artigo é desrespeitoso também com nosso país irmão, Haiti –; mas enquanto não volte a respeitar os direitos privados e o preceito da lei, a Argentina merece ser tratada como qualquer outra república das bananas."
Realmente, é um papel muito triste o assumido pela Chancelaria argentina, ao ir a Washington para pôr-se às ordens de um amo que tanto desprezo sente pelo país que eles deveriam representar dignamente.
Isso é o que eu queria dizer.
Randy Alonso.- Bem, Ministro, e quanta diferença entre o que nossa chancelaria, ao longo de todos estes anos, tem feito em defesa dos direitos de nosso povo, e essa chancelaria que, longe de defender os direitos de seu povo, as inquietudes de seu povo, o que faz é pôr-se à disposição desse amo.
Quero agradecer ao senhor, ao Chanceler, aos demais participantes que me acompanharam esta tarde; agradecer aos convidados que tivemos em nosso estúdio, à delegação da Esquerda Unida da Espanha, que nos acompanhou especialmente nesta mesa-redonda, ao companheiro Lage, e, é claro, em especial, agradecer a presença de nosso Comandante-em-Chefe, nesta mesa-redonda de hoje.
Queridos compatriotas:
A genuflexão mora na chancelaria argentina. Cada viagem de um chanceler argentino a Washington, na última década, tem sido um exercício de subordinação e humilhação diante do poderoso. Antes o fizeram Di Tella e Giavarini. Agora, tocou o turno ao senhor Ruckauf, um mestre na dupla moral, que saiu da capital norte-americana com uma forte enxaqueca.
Quando o povo argentino vive tão dramática crise e carece dos mais elementares direitos humanos, como o de se alimentar e ter acesso aos serviços de saúde, a chancelaria argentina, longe de sair em defesa dos direitos e reivindicações de seu angustiado povo, ventila com desembaraço, na capital do império, sua pretendida ação "para que o povo cubano seja livre", utilizando nosso país como moeda de troca, ante as exigências da potência que, através do FMI, converteu a Argentina no grande inferno que é hoje para seu povo.
Indigna a covardia e o pouco valor moral desse Chanceler e sua chancelaria, como dói profundamente que o povo argentino tenha de viver tão triste momento. A esse querido povo, reiteramos nossa solidariedade.
A Argentina, ontem paradigma dos neoliberais, é hoje a melhor amostra de um sistema que quebra as nações e marginaliza os seres humanos.
Cuba, enquanto isso, segue construindo o sonho da sociedade mais justa possível. Os povos, avassalados e preteridos, estão do nosso lado. Eles são os que fazem a história; os outros, os genuflexos e mesquinhos, ficarão esquecidos em alguma página dessa história.
Nada nos deterá na batalha por nossos sonhos.
Por Cuba, com Fidel, seguimos em combate!
Muito boa noite.